A fantástica pintura de Batarda, feita tapeçaria, que justamente se tornou imagem de marca do Tribunal, é uma alegoria, é talvez uma metáfora, é um enigma. Cada um vê a seu modo.
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Por mim, vejo embaraços, vejo o emaranhado dos acórdãos do Tribunal, deste último, sobretudo, que é quase impenetrável. Vejo o enredamento de que falava o pintor: "Muitas linhas, folhas escritas, códigos, códices, calhamaços, cartapácios e quantidade ruidosa de livralhada". A livralhada agora desabou sobre o Governo. Novamente.
Os meios escassos do Estado...
No estudo da economia, cedo se aprende um elementar postulado: meios escassos, fins múltiplos. É de base empírica. E está ligado ao magno problema da boa ou má afectação de meios, privados ou públicos.
Há muitos anos, havia a "Lei de Meios". Era assim: a Assembleia Nacional aprovava uma lei genérica que "autorizava" o Governo a fazer tudo: concentrar o poder de definir e executar a política orçamental, os impostos e as despesas públicas, proceder como único órgão de soberania verdadeiramente mandante, ditar o papel do Estado, as suas funções e regimes, e o modo de os desempenhar. Vigorava a Constituição de 1933, Salazar estava em longa viagem, democracia não havia, eleições não eram livres, Parlamento era como que um recanto governamental. O Estado estava submetido à "ditadura financeira", após uma rota de perdição que vinha da I República... Mas voltemos à "Lei de Meios". Meios? Tal e qual. O nome destacava, a meu ver bem, a questão dos "meios", não a questão dos "fins". Não se chamava, mas poder-se-ia ter chamado: lei de fins... Ou lei de fins e meios... Mas não. Por alguma razão se chamou "Lei de Meios", quer dizer, lei de impostos, taxas, receitas patrimoniais, etc., e dívida. Razão de nome que, suponho, era substantiva mais do que formal. Razão que hoje tem grave acuidade quando assistimos à derrocada pré-troikiana dos "meios" (.../2011), à subsequente dureza troikiana dos "meios" (2011/14) e ao continuado rigor pós-troikiano dos "meios" (2014/...).
Os fins abundantes da Constituição...
Quando escrevi um livro sobre o peso e a reforma do Estado, em 2005, percorri o extenso texto da Constituição em busca de uma alusão à questão dos "meios", mas não vislumbrei uma frase, uma palavra. Nem sequer um implícito toque entre normas tão ávidas como as do sistema fiscal e as do Orçamento do Estado (artigos 103.0º a 106.0º). Em 2013, na reedição do livro, confirmei que a Constituição carrega o Estado de funções mas, "...no outro prato da balança que é o das finanças públicas, não encontramos adequados meios, travões, temperanças. Não vemos algo que diga a governantes, burocratas e juízes qualquer coisa como, por exemplo: o Estado fará tudo isso, porém fá-lo-á com regra, peso e medida, em conformidade com sustentáveis finanças e com o crescimento da economia.". Deixe-me o leitor dar o exemplo do artigo 105.0º-4 da Constituição. Diz assim: "O Orçamento prevê as receitas necessárias para cobrir as despesas(......)". Repare-se, não diz: O Orçamento prevê as receitas e, em função destas, prevê as despesas. O subconsciente da Constituição põe o carro à frente dos bois, a canga é a dívida.
O Tribunal Constitucional...
O acórdão do Tribunal desabou sobre o Governo. O Tribunal terá, por certo, alguma razão. Todavia, recuando no tempo, não ouvi o Tribunal bradar, posso estar enganado, quando deslizávamos para a dita derrocada de 2011. Não o ouvi sobre o excesso da despesa, frente aos "meios". Ter-lhe-ia ficado bem o brado (a par do Tribunal de Contas, diga-se). Poderá o Tribunal porventura contrapor objecções do tipo institucional, ou de estatuto, e do tipo constitucional, ou de letra da lei fundamental (que não de espírito). Tais objecções não me pareceriam apropriadas. E adianto algumas observações a partir dos artigos 221.0º a 224.0º da Constituição, sobre o Tribunal, e os artigos 277.0º a 283.0º, sobre a fiscalização das constitucionalidades.
1.ª observação: Ao logo de tantos anos, não foi o Tribunal requerido a pronunciar-se, ou não se interpelou a si mesmo (o resto é processual), sobre a viabilidade, sim, digo a "viabilidade constitucional", das funções e dimensão do Estado? Sobre a relatividade entre a grandeza dos "fins" e a escassez dos "meios"? Sobre se a tendência da despesa e dos "fins" se compaginava com o lado dos "meios", a carga fiscal e a dívida? Sobre se essa tendência era sustentável?
2.ª observação: Estando a questão dos "meios" absolutamente omissa da letra da Constituição, não podia e devia o Tribunal considerar que ela está, tem de estar, omnipresente no seu espírito e na sua inteligibilidade? De outro modo, não teremos de concluir que a Constituição estabelece um quadro de gestão financeira da República que, sendo insensível aos "meios", é um quadro anti-inteligência?
3.ª observação: O Tribunal não podia e devia fiscalizar a constitucionalidade das leis do OE cujos défices (de "meios") feriam normas de tratados europeus, como o Pacto de Estabilidade e Crescimento, o de 1997 e o de 2005? Ou das leis do OE que, anos a fio, exibiam desrespeitos pela LEO, Lei de Enquadramento Orçamental, que é uma lei importantíssima de valor reforçado? Não entendeu o Tribunal que, se a LEO e a sua lei de estabilidade orçamental tivessem sido devidamente aplicadas, muito provavelmente não teria ocorrido a derrocada de 2011? Como se explica que a LEO tenha tido uma dúzia de anos de vigência pouco assistida e pouco praticada?
O Governo...
Observo a serenidade do primeiro-ministro perante o desabamento. Faz bem. Dá sinais de quem terá, por certo, alguma razão. Todavia, para lá da argumentação especializada do Tribunal, que é agreste de ler, e para lá dos pareceres técnicos do Governo, que desconheço, e para lá da pesada herança que Sócrates entregou a Passos, pergunto: em que é que o Governo não esteve bem? Primeiro, em reaparecer sem soluções "estruturais", isto é, integradas, permanentes, autenticamente reformistas, no domínio das funções e regimes do Estado (o Tribunal avisara...). Segundo, em reincidir nos cortes de certas despesas, cortes ditos temporários mas que aparentam uma "reserva mental" política, uma premeditação de conversão em cortes definitivos quando der jeito (o DEO 2014/18 jura promessas de anulação dos cortes de salários e pensões, mas soa a eleitoralismo). Terceiro, em afrontar o Tribunal com essas repetições.
De resto, os políticos portugueses e os responsáveis institucionais, incluindo os juízes, ainda têm muito a fazer em prol da qualidade das instituições que têm por missão vigiar as finanças públicas.