Os nossos muros ou a lembrança de Jorge Sampaio
Todos os Natais, os cristãos acreditam mais na sua fé e todos, cristãos, outros crentes e não crentes, vivem a família, o encontro, o reencontro, a partilha possível para cada uma e cada um. Diferentes. Que não há duas pessoas iguais. E muitos de nós recordam - na sua solidão ou no meio dos abraços e beijos de Natal - aquelas e aqueles que não têm Natal, nunca tiveram e nunca terão. Porque a miséria, a guerra, a morte, a doença ou a distância dos seus entes queridos toldam de uma tristeza, saudade, melancolia, dor, a alegria, mesmo se só possível, de um tempo de esperança. As televisões recordam os que sofrem na Ucrânia, no Médio Oriente, no Sudão. Mais raramente, o s que nasceram, vivem e morrem sem nunca ninguém saber que existem e quem são. Ainda assim, no Natal há quem pare um minuto para não se esquecer desses milhares de milhões sem Natal, ou milhões para quem o Natal em guerra passou a ser um modo de viver o Natal. Este ano, não sei porquê, lembrei-me de Jorge Sampaio. Estávamos em 1989. E concorríamos os dois - amigos já antigos, filhos de pais amigos já antigos - à Câmara de Lisboa. Caiu o muro de Berlim. E eu sublinhei esse momento decisivo na História contemporânea - e que viria a substituir as duas superpotências de décadas pelas duas superpotências de hoje, com a que deixou de o ser a nunca desistir do sonho do que fora. E converti o momento, em sinal para o futuro, também de Portugal.
Aí, Jorge Sampaio respondeu a essa minha chamada de atenção - diria de razão na mudança no Mundo, mas, igualmente, conveniente como arma eleitoral - com um comentário muito simples e muito poderoso - "mais importantes do que o muro de Berlim são os muros que existem na nossa terra". Não garanto o rigor dos termos, mas a ideia era essa.
E, este ano, este Natal, lembrei-me de Jorge Sampaio e da sua frase, obviamente eleitoral, mas, essencialmente, justa e certeira. Quase quarenta anos depois, Natal que ignore os muros de Berlim de hoje, os de lá de fora, os das guerras, ódios, disputas, pobrezas do Mundo, não é Natal, nem é nada. Porque, mais do que nunca, somos um só planeta, um só Mundo, uma só Humanidade.
Os muros dos outros são os nossos muros. As fronteiras, as opressões, os sofrimentos dos outros, são as nossas fronteiras, opressões, sofrimentos. E as suas esperanças, ainda que muitos vagas, muito ténues, muito precárias, são as nossas esperanças. Para já do cessar-fogo no Médio Oriente, na Palestina, em Gaza. Ainda não na tão mais próxima Ucrânia.
Eu tinha razão ao falar no muro de Berlim. Nos muros lá de fora, que são cá de dentro. Inevitavelmente. Só que Jorge Sampaio tinha razão ao evocar os muros nascidos e agravados cá dentro. E que, alguns deles, não pararam de se agravar.
A pobreza já foi mais grave e já foi menos grave. Mas nunca deixou ser grave demais para o todo nacional que somos. Antigos muros caíram. Novos muros se ergueram. Pobreza com envelhecimento coletivo imparável. Menos jovens a ficarem e mais gerações antigas a entrarem em becos sem saída. Mais leis a prometerem melhor futuro com mais abertura, tolerância, paz, segurança e, ao mesmo tempo, mais medos, reais ou imaginários, mas todos vividos como reais, a convidarem a mais muros, muros mais altos, tão altos que não se veja nada senão muros.
Foi assim, veio-me à memória a frase de Jorge Sampaio, este ano, este Natal. Quer isto dizer que deixemos de estar atentos aos muros lá de fora? Claro que não. Eles são ou serão, mais dia menos dia, nossos. Quer isto dizer que desanimemos, desistamos da esperança, sempre, e, em especial, no Natal? Claro que não. Há muros que podem ser difíceis de demolir. Porém não são impossíveis. Quer isto dizer que percamos a esperança neste Natal, e fora dele e sempre? Claro que não. Umas vezes, ajudamos a derrubar muros. Outras, fracassamos. E o mais avisado talvez seja, neste Natal, revermos o rol dos muros mais urgentes de superar. Sem respondermos a um muro com outro muro. Que os muros tendem a alimentar-se de outros muros. E isso não cria esperança, alimenta condomínios fechados de egoísmos em que só alguns têm direito ao Natal.

