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Durante anos, a economia portuguesa esteve estagnada, com um nível de crescimento anémico. Ainda assim, as famílias contraíram, entretanto, uma sucessão infindável de dívidas. O crédito era fácil e acessível a muita gente, não havia habitação para arrendar, o que obrigou muitos a comprarem casa recorrendo ao crédito.
Por outro lado, a sociedade de consumo fez o seu papel e muita, muita gente, por ela alienada, adquiriu gadgets, televisores de plasma, automóveis vistosos e muitas outras coisas de utilidade discutível. Os quartos das crianças encheram-se de brinquedos inúteis, de consolas e de roupas desnecessárias. O cartão de crédito servia, então, para quase tudo. Ou seja, o consumo não se deveu ao crescimento económico mas à conta do crédito fácil, tantas vezes enganoso.
Habituados, no passado, a poupar, os portugueses acreditaram, e foram ajudados a acreditar, durante esses anos, que era possível contrair dívida sempre que os seus recursos não eram suficientes. Apesar do adensar da crise em 2008, ainda houve quem continuasse a viver assim. Mas, como se sabe, foi sol de pouca dura. Subitamente, o acesso ao crédito externo desapareceu e, para além disso, a crise da dívida pública passou a pesar no bolso dos contribuintes. Com a redução do financiamento do rendimento disponível, os níveis de consumo caíram abruptamente, o que contribuiu, também, para que muitos portugueses perdessem o seu emprego, que antes julgavam seguro.
A classe média, que crescera e prosperara nos anos noventa do século passado, viu-se assim numa situação tão inesperada e desesperada. Por um lado, porque as suas receitas caíram abruptamente. Por outro lado, porque as dívidas permaneceram intactas, incrementadas pelos juros. Finalmente, porque o Estado se transformara, entretanto, num impiedoso cobrador do fraque.
Hoje, muitas dessas famílias estão muito mais próximas do limiar da pobreza do que da fasquia da classe média. Tentam, como é natural e humano, simular junto dos amigos, familiares e colegas, que, apesar de tudo, a vida continua como era dantes. Mas, chegado o fim do mês, a receita não chega para cobrir as despesas. Algumas outras, que ainda não foram afetadas pela crise, vivem numa profunda ansiedade, porque temem que, por este andar, também elas possam ser atingidas pela desgraça. Aqui e ali, surgem focos de pobreza envergonhada, de pessoas que, subitamente, se veem confrontadas com uma situação nova e dramática, que nunca sequer imaginaram, que não conseguem confessar.
Ao contrário de todos aqueles que sempre viveram na pobreza, e que conhecem, apesar de tudo, as regras essenciais da subsistência, temos agora um número crescente de pessoas que não sabem navegar nessas águas, que não conseguem, sequer, fazer as escolhas de vida mais avisadas.
Muitas dessas pessoas estão bem próximas de nós. E, em muitos casos, não somos capazes de detetar as suas dificuldades. Há dias, encontrei uma senhora, em plena Baixa do Porto, que me dizia que tinha andado, durante vários meses, a ajudar uma instituição de solidariedade social até perceber, através de um sobrinho, que em casa da sua irmã, que antes vivia de forma desafogada, se passava fome. Não fora capaz, confessava, de detetar uma situação que lhe estava bem próxima, e que poderia ter ajudado a resolver.
Razão pela qual teremos, doravante, de fazer um esforço redobrado de solidariedade, para tentar ajudar a detetar, se possível por antecipação, esses focos da nova, e envergonhada, pobreza. E, por esse motivo, precisamos de ser mais eficientes. É verdade que os portugueses são muito solidários. Há, no entanto, uma excessiva dispersão de recursos, muitas vezes por desinteressada generosidade. Ora, a proliferação de iniciativas de solidariedade, por muito que nos custe, resulta muitas vezes em desperdício, e gera cansaço e desconfiança. Razão pela qual é necessário apoiar, cada vez mais, as instituições credíveis, e com provas dadas. Essas instituições são as mais habilitadas a compreender e a ajudar a resolver, os dramas da pobreza envergonhada.