"Rios vermelhos" é um filme de Mathieu Kassovitz que retrata uma série de crimes hediondos numa universidade situada numa ilha isolada. Pouco a pouco o filme revela a relação entre esses crimes e a endogamia generalizada nesse campus universitário. A sucessão entre progenitores e filhos na universidade tinha gerado uma comunidade de consanguinidade, conducente à loucura. Este não é apenas um thriller, é uma metáfora sobre as universidades.
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É que as universidades são das instituições mais propensas à endogamia. Professores que promovem os seus assistentes que por sua vez, mais tarde, promovem os assistentes deles. Este é o modelo tradicional da carreira académica nas nossas universidades. Durante muito tempo (e, para muitos, ainda hoje) quem fazia o doutoramento fora era um traidor "à casa". Mais de 70% dos nossos professores fizeram o doutoramento na universidade onde ensinam. Muitos nunca dela saíram. Isto é a antítese do espírito científico. A carreira não depende de uma avaliação pela comunidade científica, mas, apenas, pelos próximos. Promove-se a fidelidade pessoal em vez do mérito. Na versão mais benigna, recompensa os que se transformam em meros apóstolos do seu mestre em vez daqueles que questionam o seu pensamento ou procuram outros caminhos.
Nas melhores universidades a regra é, pelo contrário, nunca contratar um dos seus doutorados. Estes têm de provar o seu valor fora dessa universidade para, mais tarde, poderem ambicionar regressar. Em Israel, a excelência científica foi promovida, "obrigando" os melhores alunos a irem fazer o doutoramento fora. É o que melhor garante a independência do juízo de mérito e excelência mas também o que os liberta para terem um pensamento próprio e beneficiarem de ideias e metodologias diferentes.
Também em Portugal as coisas estavam a mudar. A grande maioria dos reitores e uma parte importante da comunidade académica começa a ter consciência dos problemas do modelo endogâmico e da importância de o combater. Foi para contribuir para isso que o atual quadro de fundos europeus (PT 2020) impôs, como condição do financiamento, que o número de doutorandos e pós-doutorandos internos não podia exceder 1/3. Mas, não apenas isto não parece estar a ser respeitado, como o atual Governo veio criar um regime de contratação de professores destinado a favorecer candidatos internos. Trata-se de um regime provavelmente ilegal, contrário ao direito da União Europeia. Mas, sobretudo, é um grave retrocesso para o nosso sistema científico. Várias vozes vieram alertar para isto, do ex-reitor da Universidade de Coimbra João Gabriel Silva a Luís Aguiar Conraria ou João Pedro Vidal Nunes. Mas mais deviam fazer-se ouvir. É o futuro do país que está em causa quando se desincentiva o mérito no sistema científico.
*Professor universitário