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O senhor P. tem 60 anos, solteiro, sem filhos, vive com a mãe de 87 anos. Reformado desde há dois anos por patologia psiquiátrica. Esta semana veio quase todos os dias ao serviço de urgência do CHUSJ (SU) por queixas físicas, devido a patologia mental. Está a ser acompanhado em consulta de psiquiatria noutro hospital. O ano passado foi o maior utilizador do nosso SU: 123 vezes, ou seja, uma vinda em cada três dias. Algo está errado nesta história verídica.
Em 2021 houve cerca de 4 mil e 600 doentes que recorreram quatro ou mais vezes ao SU, os denominados utilizadores frequentes, num total de 25 mil episódios, constituindo 16% do total de episódios do SU de adultos (excluindo a ginecologia/obstetrícia). Nesse ano tivemos também mil e cem episódios de pessoas que vieram 20 ou mais vezes à urgência, os designados superutilizadores.
Dos 30 doentes que constituíram este último grupo, metade apresentava doença mental, a que não é alheio o facto da urgência metropolitana estar sediada nesta instituição. A outra metade são doentes idosos, com múltiplas patologias (geralmente 10-12), seguidos em várias especialidades (num deles contei 21 consultas distintas) e sobremedicados (identifiquei 20 medicamentos prescritos, que dificilmente estará a tomar).
Estes superdoentes, são super em quase tudo. Na idade, nas doenças, nos medicamentos. Mas não na família ou nos amigos. Vivem em geral sozinhos, são de classes socioeconómicas baixas e não têm apoio social adequado.
A taxa de internamento nos utilizadores frequentes foi 28% superior aos restantes, sendo que a generalidade deles possui médico de família.
Reduzir o trabalho no SU é um objetivo relevante. Não apenas em função do desgaste dos profissionais, mas porque limita a capacidade de atender os restantes doentes em tempo e qualidade. Um pequeno número de pessoas resulta num largo número de episódios de urgência e internamento, com impacto desproporcionado de custos.
Para estes superdoentes não precisamos de um super-hospital, mas de um SNS organizado e mais humanizado, que responda de forma integrada aos problemas, muitos deles sociais, com dignidade. Neste aspeto continuamos, como sociedade, a falhar. Na ausência de outras respostas de proximidade, continua a ser o SU a última solução, não a mais apropriada, mas sempre presente.
A resposta que a nossa instituição tem dado ao senhor P. não é a adequada. Uma parte dessa responsabilidade seguramente que é nossa. Temos de conseguir alterar a história destes superdoentes...
*Presidente do Conselho de Administração do Centro Hospitalar Universitário do S. João