O rei de Espanha anunciou ontem a decisão de abdicar do trono. Sabia-se há muito que Juan Carlos ponderava passar o testemunho ao seu filho Felipe: restava apenas esperar pela consumação de tal ato.
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Para lá da ampla espuma noticiosa que o facto suscita, que interesse temos nós, portugueses, nesta matéria? Trata-se apenas de seguir a ascensão a rainha de uma moça plebeia que abdicou de uma promissora carreira no jornalismo para entrar na casa real espanhola? Trata-se apenas de aproveitar a ocasião para lembrar a importância decisiva que Juan Carlos teve na transição da Espanha para um regime democrático? Trata-se de colocar a lente do voyeur para recordar as "façanhas" amorosas do rei? A tendência será essa, mas o que a abdicação de Juan Carlos acarreta merece outro tipo de reflexão.
Antes de mais, é preciso recordar a importância de Espanha para Portugal: é a nossa única fronteira terrestre e o nosso principal parceiro comercial. As relações entre os dois países são excelentes há muitos anos, apesar da dificuldade que os espanhóis têm em entender o Português e da excessiva cortesia com que os portugueses tentam arranhar o Espanhol. Alterações políticas de substância em Espanha terão, certamente, repercussões indesejáveis em Portugal, pelo que convém estar atento ao que se passa aqui ao lado.
E o que se passa? Passa-se algo de muito relevante: as eleições europeias pulverizaram o cenário político espanhol, não apenas porque fragilizaram fortemente os partidos do arco da governação (PSOE, socialistas, e PP, conservadores), mas também (talvez sobretudo) porque fizeram emergir os partidos dos extremos (não confundir com extremistas). Na Catalunha, por exemplo, o PSOE quase desapareceu do mapa político. É por isso que, ontem, mal se conheceu a decisão de Juan Carlos, dispararam os alertas e os apelos para que se referende, o mais depressa possível, a continuidade da monarquia.
O que acima fica dito quer dizer duas coisas. Primeira: a dura crise, plasmada nos elevadíssimos níveis de desemprego, partiu a Espanha a meio. Segunda: está por provar que a Casa Real seja cimento suficiente para colar os cacos que daqui podem resultar. Escrevia ontem o diário espanhol "El País": "Don Felipe de Borbón não herda uma situação plenamente estável e tranquila, nem uma situação em que a instituição monárquica goze de reconhecimento geral. Pelo contrário, Espanha atravessa múltiplos problemas, desde a desafeição de uma parte da cidadania em relação ao sistema institucional existente até à ameaça secessionista da Catalunha".
As diatribes de Juan Carlos e de alguns dos seus familiares contribuíram para a "desafeição" dos espanhóis. Saberá o futuro rei Felipe VI conquistar o coração do "seu" povo? Ou estará a Espanha à beira de uma reviravolta?