Está nos livros: onde existe uma grande dependência do Estado, mudanças no poder trazem consigo mudanças na opinião de muitos. Não antes, mas depois ou, pelo menos, a partir do momento em que se torna óbvia a derrota da "situação", como se dizia antigamente. O povo crismou-os: "vira-casacas". Os mesmos que até aí aplaudiam, servilmente, o poder descobrem, subitamente, o seu engano. Coerentes na sua vocação de bajuladores, continuam a aplaudir o poder. O novo. Encontramo-los entre os empresários, grandes ou pequenos, os gestores, públicos ou privados, os comentadores. Por toda a parte. Representam o pior da espécie humana, se é legítimo atribuir-lhes essa pertença pois falta-lhes coluna vertebral. Governo que se deixe rodear por eles, lhes dê ouvidos ou se deslumbre com os encómios em que se especializaram, está a meio caminho do autismo. A outra metade será da responsabilidade dos que vêem a política como se de um jogo de futebol se tratasse. Em conjunto, actuam sobre a componente narcisista que há em quase todos os homens públicos. Falam-lhes da história e de como esta os verá. São piores do que as sereias o eram para Ulisses. Alguma dessa gente já apareceu, ou reapareceu, em força, nestas duas semanas.
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2. As medidas simbólicas que o Governo tomou foram erigidas, por eles, quase em reformas estruturais. Vai-se a ver e parece que os membros do Governo não pagam quando viajam pela TAP (vá-se lá saber a razão!) pelo que, para além do bom exemplo, a medida apenas granjeou a simpatia das tripulações da transportadora área nacional que, nesses voos, terão mais lugares em executiva para usufruírem das suas mordomias. A extinção dos cargos de governador civil e director-adjunto dos centros distritais de Segurança Social vão na direcção certa, conquanto o impacto nas contas seja diminuto. Quanto às poupanças decorrentes de um menor número de ministros e secretários de Estado, não são certas (depende de quanto vierem a custar os assessores) e podem ser pírricas se, com a constituição de superministérios, o Governo perder em eficácia numa altura em que era decisivo que funcionassem bem. Numa sociedade em que o simbólico tem importância, estas decisões são acertadas. Dão um sinal e apontam um sentido de mudança. Porém, se o Governo se deslumbrar com a amplificação que os seus zelotes lhe deram, corre o risco de repetir o percurso do anterior executivo.
3. Mesmo perante uma medida intrinsecamente má - o aumento de impostos associado à retenção do equivalente a metade do 14.º mês, isto é, cerca de 3,5% do rendimento - muitos não tiveram pejo em a elogiar. Como se uma medida pudesse ser boa ou má consoante a cor de quem a toma. A medida é má. Ponto final. Não há benefício da dúvida ou estado de graça que lhe valham. Porventura a menos má, em comparação com outras. Não sabemos, nada nos foi dito. Talvez se tenha tornado inevitável perante o propósito, que subscrevo, de dar um sinal de garantido empenhamento no cumprimento dos objectivos estabelecidos. Em excesso de zelo, alguns escribas e comentaristas invocaram como justificação a eventual derrapagem das contas públicas cujo estado teria sido ocultado. O Governo não o fez, não sabemos se para manter a promessa de Passos Coelho, se por saber não ser seguro que os resultados no 1.º trimestre comprometessem o objectivo de 5,9% para o défice anual. Saúda-se a honestidade intelectual, bem como se aceita que, por precaução, tenha posto mais peso nestas medidas (isto é, aumentado a percentagem e o âmbito da tributação).
4. Mais receita é uma forma de combater o défice. Errada - Portugal já tem uma carga fiscal excessiva. Inevitável - no curto prazo, não é fácil cortar significativamente nas despesas. Palpita-me que não ficaremos por aqui, nas receitas, e anseio por saber o que se vai fazer do lado da despesa e, em especial, no que toca ao estímulo à competitividade e emprego. Só então se poderá fazer uma análise séria.