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"Se ela for falcão bravo, dou-a ao vento, /Não a reclamo, nem que as suas peias/ Prendessem ao meu peito o coração,/Rapine em liberdade"
Nem ela era falcão bravo, nem ele a deu ao vento, ainda que achasse que era sua para dar. Ele assassinou-a no último ato.
Desdémona amou Otelo quando viu a sua mente, mas Otelo amava-se apenas a si mesmo. Amava a admiração e a piedade que, segundo ele, Desdémona sentia pelos seus heroicos feitos e privações. O amor dela era privado, o dele era poder e afirmação pública.
Por isso a traição lhe pareceu tão insuportável. Como podia ela trocá-lo? E o que dizia isso sobre ele, o forasteiro de Veneza, o Mouro cuja reputação foi conquistada na força do músculo em campanha? "É por ser negro?/ Acaso, não ter modos de conversa/ Afins aos cortesãos, por ser entrado/ Quiçá, no vale dos anos". A culpa do ciúme que conduziu Otelo ao crime não é da paixão que sentia por Desdémona, até porque o amor não é motivo aceitável para o homicídio. Otelo matou-a porque achava que ela era sua para matar - "O casamento/ É uma praga, achamos que são nossas/ Mas não os seus desejos!" - e porque ela feriu o seu ego - "[Sou] um assassino honrado, se quiserdes/ Pois nada fiz por ódio, só por honra".
Otelo, que Shakespeare escreveu em 1604, não é uma tragédia doméstica. Otelo é uma tragédia política. Porque é da política o fim de tantas mulheres de má estrela que, como Desdémona, foram mortas pelo alegado amor de homens. E é também política a leitura que apelida o crime de Otelo de passional ou romântico, e que aceita o efeito atenuante dos seus ciúmes. É de tal forma política que, 407 anos depois, em 2011, esta interpretação de Otelo era ainda citada por um tribunal português para considerar o efeito atenuante do ciúme. Em 2017 uma outra decisão considerou o ciúme passional como "causa não fútil" para o homicídio de uma rapariga de 17 anos pelo seu ex-namorado*.
Cumpre-me acrescentar que Desdémona não traiu Otelo. Foi Iago, o manipulador mor e encenador da tragédia do Mouro, que envenenou a sua cabeça com dúvidas e suspeições sobre a fidelidade da mulher. Mas, para o efeito, esta informação torna-se uma mera curiosidade.
Otelo, que nos convoca a estas e outras reflexões, está em cena no Teatro Nacional São João, no Porto, até 13 de outubro. A encenação, comovente e inquietante, é do Nuno Carinhas, a quem devo Shakespeare.
*Um sumário destas decisões pode ser encontrado num artigo de Fernanda Câncio no DN, "Otelo e Desdémona nos tribunais Portugueses" (18/04/2018).
DEPUTADA