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Conheci Amadeu Ferreira como um tecnocrata. Na CMVM por alturas da reforma do mercado de valores mobiliários português. Ouvia os meus colegas do jurídico falarem dele e com ele, com respeito pela competência técnica mas já com grande afetividade pela facilidade de acesso e simpatia no trato. Mas apenas o via em Lisboa, nos gabinetes asséticos do mundo financeiro. Saída da Bolsa, comecei as andanças pelo território deste meu Norte e deparei-me com as terras de Miranda. Espantei-me. Altaneiras, contrastadas. Independentes pelo planalto e pela língua. Que sons aqueles. Com "lhes" e "ches" como os nossos ou os galegos mas impenetráveis pela música e pelo ritmo. Aprendi, nessa altura, que se falava correntemente mas, mais do que isso, se versejava, se representava, se pensava e se preparava para o futuro com persistência e força.
No centro deste redemoinho, profundo conhecedor e mobilizador estava Amadeu Ferreira (Niebro como se chamava em Mirandês).
Encontrei-o, ouvi-o e falei-lhe como num outro mundo. A paixão pela terra, pela língua Mirandesa, pela escrita e pela poesia que sempre produzia e publicava também em Mirandês fazia dele uma dessas criaturas mágicas que se transformam com a Lua, todos os dias, em algo maior.
O seu percurso esforçado e original, do seminário à construção civil, do direito às finanças, de deputado a poeta, é um exemplo e um valor a conhecer e a estudar.
Talvez se tivéssemos feito a regionalização, o Norte pudesse tomar a iniciativa de o condecorar postumamente, de fazer uma edição especial dos seus Lusíadas ou dos seus Evangelhos traduzidos para Mirandês, de organizar um seminário anual sobre a importância e o valor antropológico e económico das línguas e também da que é a nossa segunda língua oficial.
Talvez pudéssemos dar prioridade na nossa Faculdade de Letras ao estudo e investigação deste fenómeno linguístico e social, talvez Miranda se pudesse apresentar em Braga, em Viana ou o Porto, talvez lhe pudéssemos fazer uma estátua ou dar o seu nome a uma rua.
Assim, tudo é de todos e ninguém é de ninguém. Espero que Sendim, em Miranda do Douro, possa e queira fazê-lo por nós.
Trata-se afinal de agradecer simbolicamente o que Amadeu Ferreira nos deu, como ele próprio disse, todos os dias:
"l más amportante ye l"atitude que ancarna an pequeinhas cousas, cousas mesmo mui pequeinhas que hai que fazer todos ls dies, an qualquiera sítio i delantre de qualesquiera pessonas. Cousas tan pequeinhas cumo falar, registrar, oubir, nua atitude de star siempre a daprender, a çcobrir. Cousas tan pequeinhas cumo trasmitir l que daprendimos. Cousas tan pequeinhas cumo tener pacéncia para cumbencir de l que achamos que stá cierto, sin tener que oufender. Cousas tan pequeinhas cumo acraditar que bamos a morrer purmeiro que la nuossa lhéngua. Desso nun fálan ls "curricula", mas essas pequeinhas cousas... esso ye l más amportante".