Com o que sabemos sobre as contas públicas, as medidas anunciadas pelo governo, conquanto discutíveis, são suficientes para cumprir os compromissos assumidos para este e o próximo ano. Condição crítica: o que se sabe corresponder à situação efectiva. Tantas têm sido as surpresas que todos, a começar no ministro das Finanças, têm razão para desconfiar. O monstro tem vida própria.
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A limitação mais óbvia do proposto é a sua natureza quase exclusivamente financeira. Dá a sensação que os restantes ministros, a começar no Primeiro, não tinham pensado no assunto, não tinham contributos a dar. Entre todos, preocupa-me o silêncio do ministro da Economia e o sorriso seráfico da ministra da Saúde. As medidas propostas são tecnicamente competentes mas não se consegue descortinar a sua lógica no sentido da economia. Parecem traduzir uma perspectiva do tipo "arruma-se a casa e depois logo se vê". Não tem que ser assim, nem é certo que assim funcione. Sabe-se que as medidas trarão uma quebra do crescimento, quiçá uma recessão.
No curto prazo, a alternativa passa pelo fomento das exportações e o estímulo ao investimento privado. Estas opções teriam consequências fiscais, aumentando a despesa e diminuindo a receita? É nestas circunstâncias que se espera que os políticos façam escolhas, encontrando receitas compensatórias ou fazendo cortes adicionais na despesa, disciplinando ministérios que, por sistema, violam os limites anunciados, como é o caso da Saúde. O funcionamento do sistema de saúde é o corolário lógico de um conluio tácito perverso envolvendo corporações profissionais, interesses económicos e utentes irresponsáveis. O pano de fundo é dado pela nossa predisposição para considerar a saúde uma prioridade inatacável, a que se soma o equívoco da gratuitidade - como se não houvesse, sempre, alguém a pagar. Basta falar com alguma pessoa ligada ao sector para constatar que não há nenhum incentivo para alterar o actual estado de coisas: quem reorganiza ou corta despesa, defronta os lóbis dos interesses instalados, arranja problemas e não colhe nenhum benefício. Ao contrário do que tem sido apregoado, não são os ricos que vão destruir o sistema nacional de saúde mas os excessos cometidos por quem dele usa e abusa, com a conivência, nuns casos, e a cedência, noutros, de quem o gere e chefia.
São os idosos que usam os centros de saúde para suprir a falta de companhia, solicitando consultas de que não carecem. São as ambulâncias que transportam vários doentes de uma só vez, mas cobram como se o fizessem individualmente. São os meios complementares de diagnóstico requisitados como cedência à chantagem dos doentes. São... Fala-se com profissionais de saúde e percebe-se que sabem o que fazer para corrigir estas maleitas. Nalguns casos são medidas simples mas que colidem com a retórica do estado social e da gratuitidade - por exemplo, cobrar mais por consultas acima de um certo número para doentes não crónicos. Ou partilhar, com a instituição e os seus profissionais, eventuais ganhos na redução da despesa, salvaguardada qualidade do serviço. E muito mais. Ouçam-nos!