Nos últimos sete meses, os destinos belgas têm sido conduzidos por um executivo limitado a funções de gestão corrente. Num país tão dividido, e num período tão acidentado, o funcionamento regular das instituições parece um milagre. Atrevo-me a dizer que tal só será possível por o aparelho de Estado estar dotado de funcionários competentes, cujas funções estão devidamente definidas, o que lhes dá um sentido de dever e os torna imunes às oscilações políticas. Não fora assim e aquelas circunstâncias seriam propícias a que as corporações "zelassem" pelos seus interesses.
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Quando, por cá, tanto se fala sobre a necessidade de reformar a Administração pública talvez valesse a pena estudar estes episódios. Entre nós, mesmo enfraquecido, temos um executivo com legitimidade para governar. Goste-se ou não! No âmbito dos seus poderes, estabeleceu uma política de austeridade de que é parte integrante a contenção da despesa com os funcionários públicos. É natural que essas decisões não sejam do agrado dos visados. A greve geral e as providências cautelares, tentando impugnar a constitucionalidade das medidas, atestam-no. A primeira é um dos direitos inerentes a um regime democrático. As segundas já são mais discutíveis, entre outras razões, por poderem configurar uma intromissão do poder judicial na esfera de competências do Executivo. O Governo preparou a defesa invocando o interesse público. Em rigor, poderia ter argumentado com o interesse dos próprios funcionários públicos. Imaginemos, por absurdo, que as providências cautelares tinham provimento. Incapaz de fazer cumprir o seu plano de contenção de despesa, ao executivo restava a demissão. A consequente perda de credibilidade dissuadiria os potenciais compradores de dívida portuguesa, aumentaria o preço a pagar e forçaria o recurso ao "apoio" internacional. Se recordarmos as consequências que, por norma, essa intervenção traz consigo no tocante à função pública, perceberão porque digo que o seu interesse também podia ser invocado pelo Governo...
Mais elucidativo daquilo que nos separa da Bélgica é, porém, o que a Comunicação Social relatou nestes dias. Como forma de neutralizar os efeitos dos cortes anunciados, vários organismos foram promovendo os seus funcionários. Feitas à revelia (ou com a conivência?) da tutela respectiva, são a prova das dificuldades do ministro das Finanças para controlar a máquina da Administração Pública. Talvez mais grave do que o impacto sobre a despesa é o sentimento de impunidade provocatória (é disso que se trata!) que tais atitudes evidenciam. Actos destes denigrem a imagem do Estado, sabotam-no.
Uma política de remunerações que permita atrair, e fixar, quadros competentes é uma pedra angular da reforma do Estado, condição da sua eficácia e eficiência. O mérito, não a antiguidade, deve ser o critério determinante. Foi um erro suspender algumas experiências que iam nesse sentido. Mesmo em tempo de contenção, ou sobretudo por isso, impõem-se a (re)definição de uma nova política de vencimentos para a função pública que não ceda à tentação populista do igualitarismo, nem dê margem a episódios como o descrito. No fundo, trata-se de impedir que sejam os justos a pagar pelos pecadores.