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A palavra do momento é "excedente". Chega a ser... transcendente que, numa altura em que o país vive uma das maiores crises da sua história, a palavra "excedente" entre no léxico dos dias cinzentos que correm. E é... surpreendente que a palavra "excedente" tenha saído da boca do primeiro-ministro. Não é difícil imaginar os homólogos de Passos Coelho por essa União Europeia fora a abrir a boca de espanto: Portugal está financeiramente de pantanas, mas ainda assim consegue ter "excedentes"?
A estratégia de comunicação do Governo é um eufemismo. Os problemas em passar as mensagens correctas são há muito evidentes, mas têm-se agudizado. Coisa complicada, na exacta medida em que é precisamente em tempos de crise séria que se impõe clareza nas ideias e mais clareza ainda na forma de as expor, sob pena de os receptores ficarem confundidos - e não há nada pior do que um eleitor/consumidor/cidadão confundido, quando lhe mexem no bolso uma e outra vez.
Voltemos ao "excedente". O primeiro-ministro disse-nos há dias que, por causa da transferência do fundo de pensões da Banca para a alçada do Estado, sobraram dois mil milhões de euros. Quer dizer: para garantirmos que o défice não vai, neste ano, além dos 5,9%, o Governo fez um negócio com os bancos, findo o qual ficou com 2 mil milhões em caixa.
A pergunta seguinte é óbvia: o que fazer com o pilim? Para os puros, entre eles os socialistas, a resposta é óbvia: voltar atrás e entregar por inteiro o subsídio de Natal aos massacrados trabalhadores. Isto é: fazer mais despesa. Claro que esta é a opção mais popular (com um tiquezinho de populismo). A menos popular, mas muito mais consistente com as nossas necessidades, é pegar nas sobras e injectá-las na economia. É a opção mais dura? É. É a menos popular? É. Mas é a única que faz sentido, porque Portugal não tem nenhum "excedente", a não ser um "excedente" de dívidas que tolda o futuro dos indígenas que há e dos que estão para vir. O que existe é apenas um pouquinho de liquidez para resolver alguns problemas de curto prazo.
O líder do PS acha o contrário. Ou melhor: acha que com os dois mil milhões de euros seria possível fazer a quadratura do círculo: pagava-se o subsídio de Natal por inteiro, garantia-se o défice e, com os trocos, ainda daria para pagar parte das dívidas do Estado aos fornecedores (presume--se que uma parte muito pequenininha). Não há país que não sonhe com um primeiro-ministro assim, capaz de fazer maravilhas a partir do nada, recorrendo apenas a uns mágicos pozinhos de perlimpimpim.
O que está aqui em causa é tão simples quanto isto: se tiver uma folga no meu orçamento, por um qualquer motivo, devo usá-la para comprar roupa para a festa de final do ano, ou, pelo contrário, devo abater uma prestação suplementar ao cartão de crédito? Cada um responderá o que entender, mas os tempos aconselham a pôr a cruz na hipótese dois.
Regresso ao início. As palavras têm um peso brutal, maior ainda quando mexem com o que consideramos sagrado, como a estabilidade das nossas vidas. Passos Coelho tem sido pouco hábil a gerir os silêncios e, por isso mesmo, fica várias vezes prisioneiro das palavras. E, logo, mais frágil.