Pantufa, uma cadela arraçada de pastor-alemão, morreu, em fevereiro de 2016, na sequência do parto realizado pelo seu dono, um enfermeiro aposentado, que a abandonou esventrada, exangue, no quintal, enquanto atirava as crias vivas para o lixo.
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Numa sentença pioneira, dois anos depois, o Tribunal de Setúbal condenou o autor do crime a uma pena efetiva de prisão de 16 meses. Pela primeira vez, era aplicado o artigo 387.º do Código Penal, que tipifica como crime a conduta de quem, sem motivo legítimo, infligir dor, sofrimento ou quaisquer maus-tratos físicos a um animal de companhia, punindo-a como prisão até um ano ou multa até 120 dias.
No sábado passado, dezenas de milhares de pessoas manifestaram-se, em Lisboa, contra a declaração de inconstitucionalidade da lei de 2014, numa clara demonstração de que a defesa dos direitos dos animais é uma causa apartidária e transversal à sociedade. Mas, afinal, o que aconteceu para ser necessário lutar novamente por um direito que a lei já consagra?
O primeiro revés foi quando a histórica sentença do Tribunal de Setúbal foi revista pelo Tribunal da Relação de Évora que aligeirou a prisão efetiva para suspensa. E, de lá para cá, houve três acórdãos do Tribunal Constitucional a anular as sentenças de primeira instância. Porquê? Os juízes do Palácio Ratton argumentam que a Constituição só prevê penas de privação de liberdade quando são violados direitos fundamentais: vida, saúde, propriedade privada ou dignidade de seres humanos. Ou seja, não se pode prender quem maltrate ou mate animais. Com base neste entendimento, o Ministério Público pediu a declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral da norma que criminaliza os maus-tratos a animais. Se tal acontecer, todas as sentenças são revertidas e os condenados podem até pedir uma indemnização ao Estado. Isto num país onde diariamente chegam às autoridades cinco queixas de abandono ou maus-tratos a animais.
Estando em curso um processo de revisão constitucional, faz sentido consagrar novos direitos, como a proteção do ambiente e dos animais - marca de água das sociedades verdadeiramente evoluídas, a par do amparo incondicional dos mais vulneráveis. Em nome da Pantufa, para que os animais não voltem a ser tratados como coisas.
Editora-executiva-adjunta