Antecipando os problemas que poderiam decorrer do chumbo do Tribunal Constitucional, o semanário "Expresso" perguntou a algumas personalidades a que cortes, do lado da despesa, daria prioridade. As opiniões variaram, mas o corte das despesas com as autarquias foi a medida que recolheu mais apoio. O painel era constituído por pessoas que desenvolvem a sua actividade na área de Lisboa. Não sei se as prioridades seriam as mesmas, houvesse a pergunta sido respondida noutras regiões. Não é esse o ponto, embora me pareça, mas é um "pareça", só isso, que a origem ajudou. As pessoas em causa são, à partida, bem informadas e, no entanto, tenho toda a razão para crer que reagiram por preconceito. Ao longo dos anos, foi-se criando a ideia de que o poder autárquico seria a sede de todo o tipo de compadrios e desperdícios, de que a rábula das rotundas é, talvez, a mais exemplar. Segundo essa narrativa, as câmaras municipais quase só serviriam para dar emprego a familiares e amigos, senão na própria autarquia então nas empresas municipais que, a julgar pelo que ia sendo dito, pululariam por todo o país como cogumelos.
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Uma dezena de casos de clara má gestão foram sendo glosados à exaustão, estigmatizando os restantes municípios. Pouco importa que a percentagem do orçamento encaminhado para as autarquias esteja, em Portugal, abaixo da média europeia. Ou que, estudo após estudo mostrem que, mesmo com os tais putativos desvios e distorções, um euro gasto pelo poder local tem mais impacto do que se gasto pelo poder central. Pouco importa, por fim, que as autarquias tenham, no seu processo de ajustamento, superado as metas estabelecidas, bem ao contrário do que aconteceu na administração central. E, mesmo que ainda haja alguma "limpeza" a fazer nas empresas municipais, e que o nível de endividamento médio das mesmas seja excessivo, tudo não passa de uma brincadeira de crianças se o termo de comparação forem as empresas públicas dependentes do poder central.
Voltemos à origem do painel. Admito que possa parecer que desenvolvo alguma teoria da conspiração mas, por que carga de água, com exemplos de tanta ineficiência e inércia no ajustamento mesmo ali à beira, foram apontar as baterias para as autarquias? A coisa não teria relevância de maior não fora traduzir uma maneira de pensar cristalizada que, uma e outra vez, ressurge e que insiste em propor para Portugal um modelo de desenvolvimento centralizado e centralista. Um modelo que apresenta uma folha de serviço de estagnação que não serviu o país, nem a própria capital, vítima, ela própria, de um processo levado muito para além do razoável e racional, ao serviço de interesses os mais variados.
Longe de mim concluir que tudo está bem com a gestão autárquica. Há por aí muito a fazer mas nem tudo é apenas, ou tão-só, um problema de mais eficiência ou eficácia - mesmo estes, exigirão, frequentemente, que se pense para além das fronteiras concelhias, em geometria variável, como fez a chamada Frente Atlântica (e, por isso, é tão preocupante a reacção de outros autarcas) ou o Quadrilátero do Minho. Estou a pensar, também, num modelo de financiamento que o torne menos dependente da economia concelhia (o que apenas contribui para perpetuar, quiçá mesmo acentuar, diferenças) e em que a dimensão social possa ganhar relevo. Um exemplo: Lisboa tem um orçamento cerca de cinco vezes maior do que o do Porto quando, atendendo à população, deveria ser pouco mais do que o dobro. E, porventura, o Porto nem será o que fica mais desfavorecido nessa comparação já que algumas grandes empresas têm, apesar de tudo, aí alguns centros de competências e actividade.
Não nos iludamos: por mais falhado que seja o pretenso modelo de desenvolvimento que nos trouxe até aqui, havia muitos que dele beneficiavam. É natural que nos tentem convencer que o problema não estava no modelo mas em pormenores que, agora sim, estarão ultrapassados. É imperioso contrapor-lhe uma alternativa. O novo poder local há-de ser parte central dela, e nela, para acabar de vez com os preconceitos.
O autor escreve segundo a antiga ortografia