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Como é que eu meto o Papa, o meu cão e a nota de 500 euros num mesmo escrito de domingo? Começo por aqui: "Mata-se o cão, acaba-se com a raiva", diz o provérbio antigo, pouco de acordo com a sensibilidade atual e pelo bem-estar dos animais. Não parece que possa dizer-se o mesmo das notas de quinhentos (levante o braço quem tem alguma no bolso), que o Banco Central vai abater de circulação, com o receio de que a notinha roxa continue a facilitar atividades ilegais como a corrupção, o branqueamento de capitais e o financiamento do terrorismo. O mal não acabará, mas será mais difícil a malfeitoria. Desde logo porque as malas terão de ser maiores.
E volto aos animais para vos apresentar o Quico, que me está mais próximo, ora deitado a meus pés, enquanto vos escrevo, ora mordiscando-me as calças, para irmos correr juntos lá fora. Vive connosco, é amigo incondicional e, se vivesse em Nova Iorque, teria até o apelido da família no registo obrigatório, como mais um membro da comunidade.
A minha declaração de interesses é simples. Tenho cão e, apesar das ressalvas quanto às prioridades do debate político, entendo que é da decência civilizacional que a lei portuguesa já criminalize os maus-tratos a animais de companhia. E que no Parlamento convirjam agora projetos de lei (PS, PAN, PSD e BE) segundo os quais, ao menos nisso, concordam em que, perante a justiça, os animais deixarão de ser vistos como coisas, para passarem a usufruir de um estatuto jurídico intermédio entre os objetos e as pessoas.
A Declaração Universal dos Direitos dos Animais foi proclamada pela UNESCO há quase 40 anos, mas os princípios de proteção que ela definiu são diariamente violados. É bom, pois, que a legislação nacional se aperfeiçoe, ainda que o debate, que voltou esta semana, pouco esclareça quanto ao conceito de animal de companhia - do cão, ao gato e ao periquito... mas há quem conviva com répteis e outras estimas.
Somos de um tempo em que os índices de solidão atingem valores preocupantes e em que a taxa de natalidade é decadente. É natural que a vida urbana nos empurre para algum exagero na familiarização da bicharada. Eis porque vêm a propósito as palavras do Papa Francisco, ontem mesmo, na audiência geral, na Praça de São Pedro, lamentando que algumas pessoas sintam compaixão pelos animais, mas depois mostrem indiferença perante as dificuldades de um vizinho: "Quantas vezes vemos pessoas que cuidam de gatos e cães e depois deixam sem ajuda o vizinho que passa fome?"