Lisboa olha para o resto do país como um aristocrata decadente olha a plebe: sobranceiramente. Longe vai o tempo em que, jorrando magnificência cristã, as senhoras mais abastadas faziam questão em manter o seu pobrezinho de estimação.
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Com o número de pobres a crescer exponencialmente, é expectável que para cada rico passe a haver não um mas vários pobres. É, por isso, provável que os fidalgos da capital que no último fim-de-semana se deslocaram às lojas chiques da Avenida da Liberdade durante o megapiquenique da cadeia de hipermercados Continente tenham avistado (de longe) dúzia e meia dos seus pobres.
Foi notório o desconforto dos responsáveis das grandes marcas pelo facto de a Província ter uma vez mais invadido a capital - e o capital - com vacas, legumes e demais ruralidades dos reinos animal e vegetal. A gerente da prestigiada joalharia espanhola "Aristocrazy", Ana Coelho (que ainda vem a ser relacionada com a família dos Leporídeos, os coelhos), nem tentou disfarçar um militante elitismo: "Sem querer menorizar as pessoas que vêm ver animais e couves, a verdade é que não são os nossos habituais clientes", destrinçou.
Uma maçada! Há exactamente 40 anos, uma coluna de blindados que também não tinha sido convidada nem era habitualmente dali mas de Santarém, percorreu inúmeras avenidas como aquela onde Madame vende hoje suas coisinhas (oh, O"Neill!), para que um dia mais tarde jóias finas e jóias do campo pudessem coexistir em democracia e quem se deslocasse à Burberry desse de caras com um burrinho, quem visitasse a Louis Vuitton se deparasse com um vitelo e quem percorresse a décima avenida mais luxuosa do mundo à procura de uma carteira, pudesse regressar a casa trauteando Tony Carreira.
Já para a presidente da União de Associações de Comércio e Serviços, Carla Salsinha (que ainda vem a ser prima muito afastada da família das Apiáceas, as salsas), "um evento de cariz popular numa avenida que se afirmou pelo luxo é colocar o glamour em perigo". O cronista não podia estar mais em desacordo com Milady (oh, Cesário!); nesta fase entusiasmante da vida das nossas cidades, não vejo o que possa ser mais glamoroso do que o gourmet. Ainda na semana passada, milhares de pessoas estiveram presentes na castiça Corrida do Porco Preto, em Braga, uma tradição de São João suspensa desde 1916, onde equipas adversárias conduziram um porco preto de 135 kg pela Colina da Cividade abaixo, até o introduzirem a roncar numa baliza, aos brados de "so typical, oh, so portuguese!" fazendo as delícias do extasiado grupo de estudantes Erasmus de visita à Universidade do Minho. E, para que conste, não só não há mais lojas Prada, do que prados, no Minho, como o nome do abnegado suíno era Libório, e não Moschino.
O megapiquenique, porém, não foi o único recado que o país real endereçou à Lisboa dos ministérios, na semana passada. Sessenta e seis chefias do Centro Hospitalar de São João, no Porto, saturadas da centralização administrativa, pediram a demissão em bloco como forma de protesto pelas desigualdades com que o ministério sistematicamente discrimina o país que fica para lá da Segunda Circular. Foi a notícia mais surpreendente do dia mas estranhamente (ou não), os jornais da capital não trouxeram o assunto à primeira página. Não se veja no espanto do cronista uma qualquer aversão a Lisboa: de modo algum! Quem não vislumbrar a mais pura inocência no modo como o Portugal profundo farto de ser ignorado decidiu recordar às elites os encómios da ruralidade, quem julga ver ironia na romagem à coutada mais surreal do país - que paira, cantando e rindo, indiferente às dificuldades - só pode ser comezinho. É certo que Belmiro de Azevedo é feito da mesma casta que Jorge Nuno Pinto da Costa, e que António Costa esteve bem, com sentido prático e equidade.
Mas, haverá lá coisa mais poética do que as florezinhas ali à beira, um aroma a fim de tarde invadindo o David Rosas ou o Rosa & Teixeira? Ou, ver um par de cabritinhas vacilando por ali, a maior afagando a pequena, titubeando: "Gucci, Gucci, Gucci"?