Para que serve o Parlamento?
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É tão chocante a brutalidade das medidas que o Governo inseriu na sua proposta de orçamento para o próximo ano, entregue esta semana na Assembleia da República, que não surpreende a multiplicação de protestos que se fazem ouvir e que já atingem as bancadas dos próprios partidos da maioria. Apesar da obstinação do Governo e dos pesados sacrifícios exigidos, as metas para a redução do défice, este ano, não foram alcançadas e está generalizada a convicção de que a insistência na mesma política e nos mesmos erros irá agravar ainda mais a nossa já precária subsistência coletiva e enredar-nos fatalmente numa espiral de endividamento sem fim. O contínuo alastramento da crise à Espanha e à Itália, a vitória dos socialistas na França e, agora, o reconhecimento pela diretora do FMI de que estavam errados os pressupostos da terapia da austeridade - cujo fracasso é há muito reconhecido e dolorosamente experimentado por gregos, irlandeses e portugueses - tornou insustentável e patética a obstinação do Governo em prosseguir nesta corrida suicida para o abismo.
São portanto bem fáceis de compreender os sinais de profunda inquietação que se avolumam no CDS e no PSD. Mas só por flagrante irresponsabilidade e miserável cobardia alguém poderia compreender que a coligação se desfizesse e o Governo caísse, ao cabo do primeiro ano de exercício! É a Assembleia da República, cuja legitimidade democrática foi renovada em eleições antecipadas que tiveram lugar apenas há um ano, o órgão de soberania competente para a fiscalização da ação governativa e para a concessão dos recursos financeiros que o Governo reclama para concretizar as suas políticas, através da aprovação do Orçamento do Estado. Aos deputados, titulares do mandato popular que lhes foi confiado, e aos partidos políticos por cujas listas foram eleitos, cabe o dever indeclinável de enfrentar a crise em que envolveram o país. Devolver ao povo o presente envenenado dos descalabros da governação atual - através de novas eleições - ou remeter ao Presidente da República o encargo de propor outras fórmulas governativas - tarefa para a qual este não está mandatado nem pela Constituição nem pelo voto popular - seria grave atentado contra o regime constitucional e um verdadeiro "crime político" contra o princípio da representação democrática! É este Parlamento - na sua composição atual, ditada pelos eleitores - e cada um dos deputados - incumbidos de exercer em consciência o mandato que lhes foi conferido - quem terá de prestar contas aos cidadãos pela forma como exercem a autoridade que lhes foi confiada.
É certo que nenhum observador imparcial correria o risco de vaticinar que o Governo atual consiga cumprir o seu mandato até ao fim! Contudo, ainda que seja muito provável que tal cenário não se venha a concretizar devido às circunstâncias excecionais que o país atravessa, aos reveses que enfrenta e ao futuro imprevisível da União Europeia, é na Assembleia da República que se deve discutir as alternativas e encontrar os remédios disponíveis para responder aos nossos problemas domésticos. Assente a poeira da última campanha eleitoral, torna-se agora bem visível a leviandade da decisão de antecipar as últimas eleições, que todavia mereceu o apoio de todos os partidos previamente consultados pelo Presidente da República, como ordena a nossa Lei Fundamental. Assim, em 2011, uma nova asneira veio tentar encobrir a asneira anterior: a tomada de posse, em 2009, de um governo sem apoio maioritário no Parlamento, após uma tentativa fictícia de o conseguir. Aparentemente, tornou-se mais fácil neste país derrubar governos e convocar o povo para novas eleições do que regenerar as lideranças partidárias que manifestamente degeneraram em forças de bloqueio do sistema político. A banalização dos atos eleitorais corrompe a democracia. Por isso, a Assembleia da República e os partidos que nela têm assento devem respeitar os eleitores e assumir as suas próprias responsabilidades em vez de se acolherem à sombra messiânica do Presidente da República e dos chamados governos de iniciativa presidencial.