A sociedade portuguesa acordou nos últimos dias para a problemática da ciência, do respetivo financiamento e também do último concurso para a atribuição de bolsas individuais de doutoramento e pós-doutoramento.
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Era expectável que os cortes que arrasaram tudo e todos, das instituições aos reformados, chegassem também à ciência e aos bolseiros, pelo que para esse problema todos estariam minimamente preparados. Mas, desta vez, a lógica não funcionou, já que o orçamento da Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT) não tem diminuído nos últimos anos, tendo mesmo aumentado ligeiramente em 2014 face ao ano passado. Assim o confirmou o ministro Nuno Crato, sexta-feira, no Parlamento, mas aquilo que não soube explicar foi a razão de tão acentuados cortes na atribuição de bolsas de doutoramento e de pós-doutoramento.
Vale a pena recordar a centralidade dos recursos humanos na produção do conhecimento. Pela própria natureza da atividade científica, seria de esperar que as variações no recrutamento de cientistas alinhassem com as variações no financiamento global. Mas aconteceu o contrário. É este o paradoxo que ninguém consegue explicar.
A estratégia de atribuição de bolsas pela FCT inclui o agora polémico concurso de bolsas individuais, a que acrescem aquelas que se enquadram em programas doutorais e em projetos de investigação. Nada contra. O que está profundamente errado é a ausência de transparência no que concerne aos quantitativos de bolsas nas diferentes modalidades, bem como no que se refere à sua distribuição por áreas do conhecimento. Aquilo que os candidatos conheceram foi o corte abrupto no concurso nacional, que mais pareceu uma desativação do programa. Esclareça-se que, tudo somado, as bolsas de doutoramento foram reduzidas para metade e as de pós-doutoramento para um terço.
Entretanto, a maioria dos programas doutorais das instituições do ensino superior não foi dotada com bolsas por parte da FCT, correndo o risco de não funcionar. Fica a ideia de que em Portugal se descobriu o caminho da excelência, sem passar pela quantidade e pela profundidade. Que eu saiba, tal não se consegue, nem na ciência, nem na cultura, nem mesmo no futebol. A lógica piramidal não é uma ficção, é a realidade.
Subsiste, portanto, a dúvida sobre o que está por detrás desta decisão política de talhar o número de bolseiros. A consequência imediata é a criação de uma almofada financeira na FCT, que seguramente terá já um destinatário pensado.
Mas há outras consequências. Desde logo, é algo que contradiz o nexus ciência-tecnologia-inovação-competitividade que decorre dos objetivos temáticos estabelecidos pela Comissão Europeia para o próximo ciclo de fundos comunitários e está expresso no acordo de parceria em fase finalização, que enquadrará o Portugal 2020.
Depois, é inconsistente com a modernização da economia portuguesa e o aumento das exportações. Sejamos claros: não se ganham quotas de mercado sem a integração de inovação nos produtos; e isso só se consegue com investimento em conhecimento, nas ciências básicas, nas tecnologias, nas ciências sociais. Qualquer retrocesso nesta matéria compromete objetivamente a competitividade da nossa economia.
Por fim, esta descontinuidade e falta de perspetivas inviabiliza a fixação de cientistas, justamente aqueles que, por serem altamente qualificados, são muito prováveis candidatos à emigração, alimentando os quadros de países ricos que, deste modo, não precisaram sequer de investir na sua formação. Se não fosse tão sério, daria vontade de rir.
Portugal apresenta hoje um investimento em I&D de cerca de 1,5% do PIB, cuja distribuição entre o setor público e o setor privado é aproximadamente equilibrada. Sabe-se que as despesas das empresas neste domínio estão normalmente associadas a duas dinâmicas: os programas financiados pelo Estado, que induzem a comparticipação privada; e a dinâmica imprimida por investigadores doutorados que entram nos quadros das empresas. Cortar na ciência e nos cientistas é, portanto, cortar duplamente. Tem de ser evitado a todo o custo, sob pena de recuarmos aos tempos em que não passávamos de um país de mão de obra barata.