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Os paraísos fiscais não são o paraíso do Fisco. Nada disso! Por antinomia, deu-se tal nome a certas instituições desenhadas, precisamente, com o intuito de dar cobertura jurídica à evasão fiscal e a outros tipos de atos ou comportamentos que, de outra forma, seriam irremediavelmente classificados como ilícitos ou até criminosos, à luz das normas jurídicas em vigor no território dos estados soberanos ou no âmbito do direito internacional. Não se trata portanto de um lugar mas de um mero artifício legal que não promete a salvação a quem quer que a mereça mas apenas àqueles que a possam comprar.
É difícil conceber algo de mais contrário à doutrina do Estado de direito, de mais oposto à democracia constitucional e radicalmente incompatível com os princípios mais elementares da ética republicana. Todavia, os paraísos fiscais, as contas bancárias offshore, têm coexistido pacificamente com os estados soberanos, sobrevivem à sombra da sua proteção e, pontualmente, até beneficiam do seu reconhecimento e gratidão, quando as fraudes fiscais são displicentemente amnistiadas a troco do regresso dos capitais evadidos...
A perda de receita fiscal é apenas a consequência mais óbvia e direta dos gravíssimos problemas que a institucionalização deste esquema pelo sistema financeiro internacional coloca às democracias e aos seus governantes legítimos. Aquilo que os mais ricos recusam pagar é um encargo acrescido para todos os outros, exatamente aqueles que têm menos recursos ou não têm como ocultar os rendimentos que auferem. Em benefício da avidez de uns tantos, minguam os recursos para garantir a defesa e a segurança comum, para assegurar o funcionamento dos serviços públicos e suportar prestações sociais, para acorrer a situações de calamidade e cumprir deveres de solidariedade internacional. Degrada-se o Estado e com ele a promessa de paz e de uma convivência decente, inerente ao contrato social firmado pela modernidade.
Mais grave que a revelação dos montantes espantosos das riquezas ocultadas, é que com elas se apagam também os vestígios das suas origens, os negócios que selaram, a identidade dos seus beneficiários, dos seus cúmplices e intermediários. A exposição pública dos resultados da investigação jornalística sobre o acervo documental da sociedade de advogados, Mossack Fonseca, do Panamá, ainda vai no início mas já provocou a demissão de um chefe de Governo e incomodou muitos outros responsáveis políticos, num desfile em que ao lado da elite financeira se mostram ditadores, celebridades, desportistas, milionários, corruptos e criminosos de vários credos e continentes.
Não se acredita que numa era em que os serviços de informação dos estados soberanos intercetam comunicações, conseguem prevenir atentados e desarticular redes terroristas nos mais improváveis confins do planeta, que não haja meios para enfrentar este monstro que parasita a economia mundial e corrompe as instituições democráticas. Não é problema que um Governo sozinho consiga resolver, é certo. Mas não é possível continuar a adiar soluções e inventar obstáculos quando se sabe muito bem o que há a fazer e pode ser feito, desde que se comece a construir e a alargar os consensos indispensáveis. Aquilo que enfrentamos é um problema de natureza política, um desafio a que nenhum governante, de qualquer democracia, se pode furtar.
DEPUTADO E PROFESSOR DE DIREITO CONSTITUCIONAL