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As novas tecnologias e as redes sociais que com elas se desenvolveram criaram um modelo de comunicação virtual que alimenta a ilusão de uma participação democrática universal. Uma oportunidade de intervenção que desconhece fronteiras e distâncias, constrangimentos físicos, contextos históricos ou idiossincrasias culturais. Condenar Donald Trump pela reforma fiscal em benefício dos mais ricos que conseguiu aprovar no Congresso dos EUA, repudiar a discriminação de homossexuais na Nigéria, denunciar a desflorestação da Amazónia ou exigir o fim da prática da amputação feminina na Guiné-Bissau, tornou-se um imperativo moral, um exercício urgente e automático à distância de um clique.
Esta ficção de uma participação permanente e infinita alimenta-se da crença ingénua numa transparência total altamente corrosiva de todos os sistemas de mediação instituídos ao longo dos últimos séculos pelo Estado de direito e pela democracia constitucional. Cada suplemento de informação suscita questões adicionais que reclamam novas respostas, num encadeamento imparável que, à semelhança dos "porquês?" infantis, só se vence pelo cansaço ou, tal como nos enredos policiais, pela identificação do autor do crime e das suas motivações ocultas. A miragem de uma infinita transparência tem dado substancial contribuição para o crescimento do populismo, a erosão dos partidos tradicionais e o agravamento da chamada crise da representação democrática. Mas não foram apenas os sistemas políticos e partidários as únicas vítimas. A contaminação generalizou-se qual epidemia a todas as autoridades públicas e promove agora ativamente a degradação da credibilidade da administração pública, banaliza a violação do segredo de justiça e até ameaça a garantia de independência dos tribunais.
Quem saiu a ganhar deste processo foram os algoritmos da Google ou da Apple que hoje parecem merecer mais confiança do que qualquer uma das instituições contemporâneas inventadas por juristas, constitucionalistas e cientistas políticos.
Pelas ruas de um bairro tranquilo de Nova Jérsia foi testado um automóvel sem condutor. Esse veículo experimental não segue uma única instrução introduzida por qualquer engenheiro ou programador. Em vez disso, é comandado por um algoritmo que o ensinou a guiar exclusivamente com base na observação do comportamento de um condutor humano. Este modelo de inteligência artificial chama-se "aprendizagem profunda". E diz Will Knight, editor de inteligência artificial na "MIT Technologie Review", que esta tecnologia assente na adoção de modelos da biologia "tem sido largamente aplicada a tarefas como a captura de imagens, o reconhecimento de voz e a tradução automática. E que existe hoje a esperança de que as mesmas técnicas possam diagnosticar doenças fatais, fechar negócios de milhões de dólares e outras coisas inumeráveis que irão transformar industrias inteiras". (The Dark Secret at the Heart of AI, maio/junho de 2017).
Em 2015, uma equipa de investigadores do Hospital do Monte Sinai, Nova Iorque, aplicou a nova tecnologia de inteligência artificial à base de dados que contém os registos dos 700 mil utentes do hospital. Segundo conta Will Knight, os resultados foram surpreendentes, designadamente os obtidos em áreas de grande complexidade como as doenças psiquiátricas, por exemplo, na deteção precoce da esquizofrenia. Mas a equipa de investigadores reconhece: "conseguimos construir estes modelos mas não sabemos como funcionam". Como seguir o rasto que explique uma determinada decisão através de níveis sucessivos de "redes de neurónios artificiais" que processam um número incalculável de dados, perceções, imagens, variáveis e cálculos matemáticos? E concluímos com o autor: a opacidade destas máquinas, os resultados imprevisíveis e imperscrutáveis a que chegam, aconselham que desconfiemos das explicações que a inteligência artificial nos conceda tanto quanto desconfiamos uns dos outros. Foram parcos, enfim, os ganhos de transparência...
DEPUTADO E PROFESSOR DE DIREITO CONSTITUCIONAL