Outro dia, no âmbito de uma conferência promovida pela Associação de Estudantes da Escola Secundária Garcia de Orta, no Porto, precisei de explicar aos jovens que nos escutavam que a minha geração cresceu à sombra da cultura cosmopolita que marcou os anos sessenta, do Movimento pelos Direitos Cívicos, na América do Norte, à Revolta Estudantil de Maio de 1968, na Europa.
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Mas foi na luta contra a ditadura salazarista e a Guerra Colonial, contra o medo e a hipocrisia dos que se resignavam às arbitrariedades do regime, que se construíram as causas e os valores que marcaram a minha geração. Criticar o Governo ou afirmar o direito à autodeterminação dos povos das colónias era proibido e punido como um crime que podia levar à prisão, ao desemprego, à morte ou ao exílio. Foram esses mesmos valores que inspiraram a generalizada adesão popular ao 25 de Abril de 1974 e transformaram um mero golpe militar na revolução democrática libertadora. Com a liberdade viria um novo estilo de convivência, a aprendizagem de novos valores como o pluralismo, a alternância, o confronto de ideias, o debate como método para superar dissidências e resolver conflitos. E com a cultura da liberdade e da democracia formou-se também a consciência de direitos inerentes a uma representação mais exigente da dignidade humana que a célebre canção de Sérgio Godinho tão bem descreveu: a paz, o pão, a habitação, saúde, educação.
Contudo, cresce hoje pelo Mundo um perigoso desapego pela liberdade e pela igualdade aqui conquistadas há pouco mais de quatro décadas. Em nome da luta contra o terrorismo, procura-se justificar, de novo, o recurso à tortura. A manipulação dos dados pessoais tornou-se um negócio privado que orienta as preferências dos consumidores e condiciona as opções eleitorais dos cidadãos. Insensivelmente, a precariedade contamina todas as dimensões da vida social. O último filme de Ken Loach, "Passámos por cá" (Sorry, we missed you), ilustra tragicamente a ruína do trabalho dependente, outrora protegido pelas conquistas sindicais da contratação coletiva e da justa causa de despedimento, e agora travestido na miragem do empreendedorismo de sucesso que cedo se revela um pesadelo. Por fim, reconfigura-se o discurso político ao agrado da volatilidade dos mercados financeiros e os eleitos incapazes de formular alternativas substituem os argumentos que lhes faltam por uma insultuosa agressividade.
Por um triz, escapamos em 2015 a este triste destino que os governantes da "troika" nos tentaram impor. Todavia, o risco persiste. Por isso, há que prosseguir o caminho então iniciado, com redobrada determinação.
Deputado e professor de Direito Constitucional