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As coisas inúteis têm um encanto maior do que muitas coisas úteis. Enquanto as úteis servem um desígnio, têm os limites criativos do seu propósito (uma faca nunca há-de ser muito diferente de uma faca), para as inúteis não há fronteiras. Nelas, a criatividade pode chegar até ao absurdo, até ao fim.
A Temu tem-me lembrado muito isto. É a Temu-toda-poderosa, a Temu-toda-alcançosa, que acha saber por que tipo particular de inutilidade eu me interesso. Mal sabe ela que quase tudo o que é inútil me interessa, mas não as coisas inúteis que me propõe. Um potente ventilador turbo portátil, preto. Um kit de escovas rotativas de limpeza para o carro e a casa de banho. Um bocal exercitador dos músculos faciais. Um acessório para espremer o tubo da pasta de dentes.
De tão apresentadores de coisas inúteis, a Temu e o seu algoritmo louco, é como se fizessem poesia comercial, um género literário que acabo de inventar: os haikus dos trocos. Ouçam: chinelos com luzes LED integradas; descascador de bananas em forma de banana; fontanário para gatos; renovador de tecidos recarregável com USB (seja lá o que isso for); e uma capa cónica para aparar o cabelo (igual, para pessoas, aos cones que pomos nos cães depois de irem ao veterinário).
Mas a minha biblioteca também tem a beleza das coisas inúteis e, essa sim, interessa-me. Não me refiro à beleza da literatura, que é a maior das belas inutilidades. O melhor exemplo chama-se “Pássaros do Mesozóico, um guia de campo ilustrado”, do paleontólogo Juan Benito e do ilustrador Roc Olivé.
Nas ocasiões em que fui ao Mesozóico, a terra estrangeira por excelência, nunca me ocorreu que precisasse de levar um guia de campo das aves. Por esse motivo, nunca cheguei a distinguir a diferença entre a plumagem do Beiguornis khinganensis e do Sulcavis geeorum, nem percebi que aquele pássaro cinzento e preto, pequeno de dez centímetros, era a guerreira-fêmea-surpreendentemente-valente, e não, como eu achava, a ave-do-sagrado-confúcio.
Para quando quisermos vê-los in loco, o guia de campo dá-nos a panóplia possível dos primeiros pássaros, que foram os últimos dinossauros. É um guia de campo mas é um tratado à criatividade, um hino à beleza das coisas inúteis, na verdade muito úteis: este livro torna vivas as aves extintas, parecem estar à distância de um passeio a pé pelo Mesozóico. Vemo-las de galho em galho e quase as ouvimos piar, efeitos de um outro género literário muito diferente dos haikus comerciais da Temu: a poesia do conhecimento - bela, ilimitada e cativante.
(O autor escreve segundo a antiga ortografia)