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Há tempos, face à rigidez da despesa pública, um jornal pediu sugestões de cortes a um grupo de "peritos". Com uma excepção, todos se referiram aos municípios. Todos partilhavam uma outra característica: eram de Lisboa. Perguntados seriam, certamente, contra a regionalização. E, no entanto, a sua escolha e o seu discurso são, eles próprios, uma manifestação do pior regionalismo: o paroquialismo centralista e preconceituoso.
Não será fácil mudar este estado de coisas. Assim se determinam os protagonistas e a agenda, desde temas relevantes até aos mais fúteis, de que é exemplo a obsessão mediática com o estado da equipa de futebol do Benfica, pouco diferente, e para melhor, da do FC Porto. Um outro exemplo, mais antigo, ocorreu quando, sem pedir licença a ninguém, a Associação Comercial do Porto, sob o impulso de Rui Moreira, encomendou um estudo sobre o então chamado novo aeroporto de Lisboa. Nele se demonstrava que a solução da Ota era ruinosa e que a Portela ainda tinha muito para dar e se sugeria uma alternativa que viria a ser conhecida por Portela+1. Caiu o Carmo e a Trindade. À míngua de argumentos, pôs-se em causa que "o Norte" se pronunciasse sobre um tema "seu" (deles), mesmo se pago por todos. Passados estes anos, a Portela ainda tem folga e, ironia do destino, o Montijo surge como o +1 preferencial, tal como sugerido no referido estudo que, no entanto, não ignorava a necessidade de se evoluir, a prazo, para uma solução mais estrutural. A crise superveniente evitou o disparate, que nos teria endividado ainda mais. O tempo deu razão a quem tinha feito um trabalho sério, preocupado com os custos e benefícios das escolhas, sem reservas mentais ou opções pré-definidas, deixando os dados falar (e quão difícil foi conseguir acesso a certos dados cujo "depoimento" alguns temiam...).
Vale a pena lembrar casos como este, exemplo do que deve ser feito. Voltemos à questão dos municípios. Em geral, os ditos especialistas criaram a ideia de que as câmaras municipais são antros de despesismo desregrado, em que as excepções apenas confirmam a regra. Não negarei evidências: há muitas câmaras que estão longe de terem sido bem geridas. Tal como dou de barato que há uma reforma por fazer que poderá desaguar na fusão de alguns municípios ou na partilha de projectos e serviços, uma reforma que não pode ser feita de régua e esquadro, a partir do Terreiro do Paço ou da Gomes Teixeira e para a qual as comunidades intermunicipais podem ser instrumentais. Nada disso está em causa. O que está em causa é o desconhecimento de muitos dos preopinantes da realidade de que estão a falar. Falam de cor. No caso dos municípios, não há razão para isso: todos os anos, sob o patrocínio da Ordem dos Técnicos Oficiais de Contas, é publicado um anuário que caracteriza a respectiva situação económica e financeira. A sua consulta evidencia que os municípios portugueses são bem maiores do que a média europeia e que, exceptuando a Grécia e a República Checa, Portugal é o país da União Europeia em que a despesa local menos pesa no total (15% por comparação com uma média de 29%), prova, se preciso fosse, da centralização da despesa pública entre nós. Em particular, as despesas com educação, saúde e prestações sociais dos nossos municípios são, no contexto europeu, irrisórias, sobressaindo, pelo contrário, as despesas com a actividade económica, incluindo as de capital. Muito dependentes das transferências do poder central, alguns municípios abusaram do endividamento, tendo-se visto obrigados a recorrer ao Programa de Apoio à Economia Local. O total chegou quase aos 600 milhões o que, como é bom de ver, não resolveria nenhum problema de fundo na despesa pública. Nos últimos dois anos, os compromissos por pagar baixaram mais de mil milhões de euros, acompanhando uma recuperação financeira notável, sem paralelo na administração central. Podia continuar. Há, decerto, um longo caminho a percorrer, subsistindo casos preocupantes que não justificam a generalização. Os municípios são como os patos feios: enquanto se olha para eles, os outros engordam e escapam. Dão jeito!