A tarefa deste Governo era, reconheça-se, exigente. Herdou um programa de ajustamento que, se levado a cabo, acentuaria a tendência recessiva em que a economia já entrara. Se não o cumpríssemos, falhando os objectivos propostos, máxime o do défice, arruinaríamos, de vez, a reputação do país perante os potenciais prestamistas, o que obrigaria a um ajustamento de consequências imprevisíveis mas, certamente, atrozes.
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Num primeiro momento, a opção do Governo pareceu a única razoável: tentar, com uma política rigorosa, readquirir credibilidade. Admitia-se que se, mesmo assim, falhássemos as metas, haveria o bom senso de as rever. Puro engano. Bom senso é um bem escasso. As derrogações foram as inevitáveis, não as desejáveis. Obstinado, o Governo fez-se agente perfeito daqueles que, dentro da troika, procuram o exemplo que possa confirmar as suas teorias. Inábil, pecou por excesso de zelo, acumulando sucessivos erros políticos. Divorciou-se da sociedade, provocou a crispação, facilitou o populismo.
Ainda assim, um governo que soubesse por onde ir, e não apenas para onde quer ir (estou a ser generoso!), e tivesse respeito pelos cidadãos, poderia, ao menos, tentar explicar o destino dos impostos, mesmo que achasse que não tinha margem de alteração. Qual a parte que vai para pagar o sistema de saúde, quanto custa o sistema educativo, o montante total dos gastos em pensões e noutros sistemas sociais, o peso das PPP, dos juros com a dívida, etc.. Perceber-se-ia, assim, que, mantendo tudo igual, a dívida pública e os respectivos custos continuariam a aumentar e que não nos víamos livres da troika tão cedo. Ora vermo-nos livres da troika o mais depressa possível poderia ser um factor motivador dos portugueses que, talvez então, aceitassem o enorme aumento de impostos que o Governo se prepara para lhes impor. Ou pensassem em alternativas que lhes aliviassem as contas, em especial àqueles que pagam impostos (e não são tantos quanto se pensa e proclama).
Uma abordagem estratégica exigiria equacionar as funções do Estado. Demora tempo e, como todos já percebemos, também aqui tempo é dinheiro. Enquanto essa discussão vai e vem, impõe-se um esforço, envolvendo os agentes no terreno, para melhorar a eficiência e baixar custos. Tenho convivido, ultimamente, muito com médicos tanto do SNS como do sector privado. Tenho-os visto cada vez mais preocupados com a situação, a pensar sobre ela, alvitrando soluções, equacionando custos, explicitando prioridades. A muitos a palavra racionamento não causa incómodo: quando os recursos não são ilimitados, há-o sempre, de uma forma ou de outra. Será tanto mais duro quanto mais se perpetuarem comportamentos, do lado da procura, sem qualquer preocupação cívica. A factura virtual não resolve mas talvez ajude a que alguns ganhem consciência do valor dos recursos que consomem. Não seria má ideia generalizar a factura ao Ensino Superior, para que cada aluno percebesse quanto "recebe" dos contribuintes portugueses, quanto o Estado investe neles, Gaspar dixit. O mesmo para a Justiça. Se, já assim, é acusada, com razão, de ser cara, ficar-se-ia com uma ideia muito mais exacta de quanto, de facto, custa.
Todos os dias temos exemplos de que será muito difícil reduzir a despesa. As razões são várias. Desde o equívoco da gratuitidade (das coisas mais perversas que se instalou no imaginário português), até às corporações instaladas no aparelho de Estado. Da inveja mesquinha (os outros têm, nós também queremos) ao desespero legítimo das povoações deserdadas, a quem tudo tiram.
Na sua ânsia de deixarem uma marca, os sucessivos governos têm desvirtuado a democracia, reduzida aos debates rituais e às eleições. Não admira o desencanto que as sondagens revelam. Alterar a situação é complicado, eu sei! É preciso respeito pelos cidadãos. Ser capaz de falar claro. O que requer que se saiba do que se fala. E ter coragem de enunciar as opções. Difícil. Indispensável. Será que este regime ainda vai a tempo de se regenerar?