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Quando não consulto o Dicionário Aguiar-Branco, para aferir que apodos são admissíveis em que circunstâncias discricionárias, mais vale deixar-me encantar pelas pequenas coisas misteriosas.
Estamos rodeados delas como se um toque divino se escondesse à mostra. Não as vemos porque, regra geral, são demasiado pequenas ou demasiado grandes. Em todo o caso, não existem à escala do nosso corpo, tão-só ao alcance do nosso espírito.
Por vezes, penso que o espírito é tudo – assoma-me um entusiasmo sem fim, uma curiosidade sem fim também –, mas a certa altura as dores de barriga, o cansaço ou uma certa fome lembram-me de que nem só de espírito vive o homem.
Acontece que as crónicas não têm corpo: aqui posso chegar aonde quiser sem os limites do meu estômago. Se olhar para a vida com os olhos da ciência – deixem-me descansar um pouco dos olhos da literatura –, encontro mistérios que são aparentados de sublime.
Descobri recentemente que as bolhas de ar microscópicas produzem luz quando implodem dentro de água. Algures no oceano profundo, dão-se pequeníssimos fogos de artifício que ninguém vê – só os peixes abissais, que são cegos. Outra minúscula luz, ainda mais enigmática, é o clarão que ocorre no momento em que o óvulo se deixa fecundar pelo espermatozóide. Os cientistas dizem que tal luz ocorre porque o óvulo liberta de súbito um feixe de zinco – mas eu acho que há outro motivo. É a festa pelo encontro, é a alegria pelo momento em que dois, que nada eram, se fazem um.
No outro dia, descobri o vídeo da morte de um protozoário. Em forma de tubo, a membrana daquele bicho quase inexistente procurou comida nos últimos segundos de vida, divagou no caldo onde sempre viveu, sentiu algo novo que chegava, algo que a desfazia, e numa última dança aflita perdeu sustância, dissipou-se e deixou para trás, vivo, o minúsculo bicho que acabara de engolir. Para uma família, foi dia de festa; para outra, dia de luto.
Por outro lado, se apontarmos ao céu os mecanismos de ouvir, captamos uma sinfonia de pedra e plasma, de estampidos e sons e ruídos cuja origem é o movimento dos corpos celestes, as lógicas da gravidade e da termodinâmica, mais o que desconhecemos. Ocasionalmente, registamos uma ameaça de comunicação, algo que não se explica sem a intervenção de vida extraterrestre; mas logo alguém desmente, embora saibamos, sem dúvida, que existe vida inteligente no cosmos.
Com um pouco de curiosidade, facilmente nos distraímos da coisa confusa e cansativa, cheia de problemas urgentes e fogos para apagar, a que chamamos quotidiano. A curiosidade é o melhor sítio para ir de férias.