1. Como se percebe pelas notícias de todos os Orçamentos, confiar no Estado é uma tarefa impossível. As mudanças fiscais são permanentes. Geram um ziguezaguear que impede uma linha de longo prazo. Repare--se no que foi a reforma fiscal do IRS de Miguel Cadilhe em 1989: um impulso à poupança e ao combate à falta de arrendamento. O Estado incentivou decisões pessoais que demoram décadas a esgotarem os seus efeitos - como a da compra de casa própria. O que aconteceu entretanto? Já desde há muito que terminou uma figura interessante, sobretudo para as gerações mais novas, que era a das contas poupança-habitação. Agora o Governo dá a machadada final neste sistema ao acabar com o abatimento no IRS dos juros pagos na prestação da casa a partir de 2015.
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E pode ser assim? Então e a geração com empréstimos a perder de vista? Esta decisão resulta num enorme desrespeito pela boa-fé e confiança no cidadão. Mas, na verdade, o Estado rouba este pequeno bónus às centenas de milhares de pessoas que compraram casa por uma simples razão: porque faz o que quer.
Dir-se-á que isto faz sentido à luz da emergência nacional. Só que este argumento vale para tudo... Não há qualquer hesitação quando chega a hora de subtrair uns bónus fiscais para se criarem outros, tão efémeros quanto os primeiros. Agora a moda é o do apoio fiscal à natalidade. Obviamente, a realidade impõe-se: há filhos se não houver dinheiro para pagar uma casa e tudo o resto? O anúncio da Renault atualmente nas televisões destrói qualquer ilusão: o especialista que está em frente ao jovem casal dá-lhes os parabéns pela notícia do bebé que está a caminho e, depois de fazer as contas, remata de forma hilariante e cáustica: "700 mil euros". É quanto vai custar a criança. "E estão cheios de sorte porque podiam ser gémeos".
2. Entretanto surge mais um enorme agravamento para quem levantar antecipadamente parte ou a totalidade de um Plano de Poupança Reforma (PPR). Repare-se: há uns anos acabou a bonificação fiscal a esta poupança. Agora o levantamento antecipado é cada vez mais agravado. Mas, pergunta-se: quem quer pagar impostos (quase 30% em alguns casos) ao levantar um PPR? Essencialmente quem está numa situação financeira desesperada (mesmo não estando desempregado). A ganância fiscal não tem, de facto, misericórdia.
Pensando-se bem nestas questões, dir-se-ia que o mesmo Governo que sabe quão loucamente caminhamos para o risco de colapso da Segurança Social a médio prazo, é o mesmo que desvia os aforradores de um mecanismo (talvez o único) de consolidação de poupanças a longo prazo. Qual o motivo? O interesse em levar os portugueses a meter o dinheiro em certificados de aforro estatais?
3. Dois problemas surgem com mais esta jogada fiscal. Por um lado - e sem querer ser especulativo - não sei exatamente o que significa "confiança no Estado". Já alguém ouviu falar do "perdão de dívida" portuguesa? Se, um dia, este perdão viesse a existir, não haveria um corte (haircut) na dívida do Estado detida pelos portugueses? Uma outra dúvida, talvez capciosa: não será por isso mesmo que se está a empurrar os portugueses a comprarem dívida nacional, tornando-nos a todos reféns de um eterno serviço de dívida que, mais tarde ou mais cedo, vai ter de ser revisto?
Escrevi várias vezes aqui contra a decisão de Vítor Gaspar em eliminar um equilibrado sistema de aplicação das poupanças da Segurança Social que fazia com que o Fundo de Estabilização Financeira estivesse limitado a deter apenas 60% de dívida portuguesa e 40% estrangeira. Uma medida prudente - de não pôr os ovos todos no mesmo cesto - que este Governo eliminou. Agora, os Fundos da Segurança Social, em redor dos 10 mil milhões de euros, têm legalmente este perfil: são essencialmente portugueses. Portanto, caros cidadãos: querem mesmo um perdão de dívida que destrua, por exemplo, 40% da poupança da atual geração trabalhadora em reserva na Segurança Social? Creio que a resposta é não. Foi exatamente isto que pretendeu Vítor Gaspar e Passos Coelho.
4. Já agora: e eleições no verão para que um novo Governo possa fazer um novo Orçamento com tempo? Passos Coelho instrumentaliza tudo em função do seu jogo político. Portugal é uma abstração tática. Mas a fatura é sempre pesada.