Ainda o Chiado fumegava, perdidos nos escombros o património e a alma do bairro, e já o então presidente da Câmara de Lisboa anunciava o convite a Siza Vieira para conceber a recuperação.
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Jogada de mestre, a de Krus Abecasis: o prestigiado arquitecto não frequentava as mesmas lojas políticas do autarca - pelo contrário, estava-lhe nos antípodas -, mas a simples invocação do seu nome surtiu o efeito desejado. A partir de então, não voltou a falar-se da incúria que ajudou a atear o oncêndio, nem dos canteiros de cimento dispersos pela rua do Carmo, que barraram o acesso aos bombeiros. Os projectos de Siza, nome de referência na reabilitação de zonas históricas, ganharam o centro das atenções.
A história, quase com 20 anos, veio-me ontem à memória, quando se soube que Gilberto Madail convidou Freitas do Amaral para avaliar a regularidade da reunião do Conselho de Justiça da Federação Portuguesa de Futebol que apreciou os recursos do Boavista e de Pinto da Costa. Um episódio nada tem a ver com o outro? Puro engano! Com a casa que dirige (dirige mesmo?) a arder em lume brando, perdendo a cada dia pedaços de prestígio, Madail acredita ter descoberto no antigo líder do CDS, reputado especialista em Direito Administrativo, o seu Siza Vieira. Graças à convocação de uma personalidade exterior ao mundo do futebol, julga poder abafar as vozes críticas. Pelo menos durante 15 dias, o prazo fixado para a emissão de um parecer.
Freitas não sabe onde se está a meter. Ou sabe e fez uma opção arriscada: o indispensável exame da situação concreta, um nó que ainda ninguém vislumbrou como pode ser desatado, sucumbiu à ânsia de protagonismo, perdido desde que abandonou o Governo de José Sócrates. Ontem, garantiu que não se pronunciará sobre "a questão de fundo", na suposição - certamente partilhada por Gilberto Madail - de que o seu parecer, qual lei, nunca será posto em causa. Sucede que, tendo a federação atingido o grau zero de credibilidade, a "forma" e o "fundo" são uma e a mesma coisa. Nada que espante: as questões formais privilegiam-se quando se perde a autoridade natural.
Neste quadro, há quem reclame uma intervenção governamental para pôr ordem no caos. O simulacro de "justiça desportiva" a que chegámos poderia constituir justificação. Porém, seria desastroso, desde logo para o futebol, se se abrisse a porta ao Governo. O secretário de Estado Laurentino Dias, consciente de que não pode cair nessa armadilha, tem gerido com pinças as suas declarações públicas, sempre que uma nova tempestade se abate. Por ora, afirma querer apurar o que de passou e que soluções tem a federação para ultrapassar o impasse. Quando reunir com Madail, há-de ouvir a resposta: "Dentro de 15 dias, pergunte ao Freitas".