Crescer é um desígnio consensual. Consensual é, ainda, que a coisa acontecerá por magia ou milagre. Para uns, o Estado, as suas despesas, o seu investimento, será o mágico de serviço. Outros crismam-no de reformas estruturais. Mais fáceis de anunciar do que de concretizar, obcecam, tornam-se numa questão de fé simétrica à crença no papel do Estado, subalternizando, também, o papel das pessoas, como actores ou destinatários. Ignoram que, se não se entender o que se pretende, para que servem, quais as razões para as modificações, as reformas estruturais soçobram, na rua ou nas urnas. Não bastam declarações genéricas do género "construir um país diferente", "melhorar a competitividade", "aumentar o nível de vida e a qualidade do emprego". No imediato, o que se tentar mexe com poderes instituídos, com interesses instalados, mas também com rotinas de quem pode não ser uma coisa nem outra. Trazem roturas e perturbações. São difíceis de compreender. Os eventuais efeitos positivos demoram tempo a acontecer, o que facilita a sua morte às mãos dos que a situação vigente protege ou privilegia. Precisam de ser bem planeadas e melhor explicadas. Sem enganar ninguém ou iludir dificuldades. Não há reformas perfeitas, em que todos fiquem a ganhar. A situação melhorará se os ganhos superarem as perdas, sendo admissível que perdedores inocentes possam ser compensados. Isto precisa de ficar claro.
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O fundamentalismo reformista tem pressa, enche a boca com a promoção do bem comum. É fácil. O teste crucial, que dará sentido e conteúdo àquele enunciado, consiste em estabelecer uma base de princípios ou valores invioláveis e inalienáveis, sobre a qual o novo edifício será construído. A dignidade humana, em geral, e a dos mais fracos e vulneráveis, em particular, é a primeira e última prova, tão objectiva como difícil. A fome, a pobreza absoluta, a exclusão não podem ser toleradas. Muitos, se não todos, subscreverão o princípio. Não basta, é preciso saber quando e como será levado à prática. Reformas estruturais sem princípios não constroem um novo projecto, arriscando-se a alienar a base de tolerância indispensável para a respectiva concretização.
Os apóstolos das reformas estruturais olham apenas para o horizonte, sem reparar nos obstáculos mais imediatos. Para além de ter crescido com desmesura, a máquina estatal nem sempre se comportou como uma pessoa de bem. Com o seu peso na economia e na sociedade, a máquina administrativa pública estabelece relações contratuais com as mais variadas entidades. Ao não honrar, a tempo e horas, os seus compromissos o Estado dá o mau exemplo. Pior, só mesmo levar os atrasos ao ponto de colocar em causa a sobrevivência de quem com ele negociou. Quem acreditará em miríficas reformas, capazes de mudar a face do país em seis meses, se há mais tempo do que esse o Estado não paga a quem deve? Antes de se abalançar a grandes reformas, são importantes sinais de que se pretende mudar alguma coisa no seu comportamento. Por exemplo, começando por saldar, pelo menos, uma parte da dívida a quem forneceu bens ou prestou serviços, na saúde, na educação, na assistência social.
Há um tempo e um lugar em que as coisas acontecem e que, por mais estrutural que seja a reforma, não podem ser ignorados. São as dívidas, como são outras circunstâncias. Será que quando o desemprego está nos 14%, com tendência para crescer, com muitas famílias à beira do desespero, faz sentido insistir em cortes no subsídio de desemprego e na liberalização dos despedimentos? Pode haver quem se acomode mas basta descer à terra para se perceber que a grande maioria anda, até à desmoralização e ao desincentivo, à procura de trabalho. As pessoas não são um detalhe cuja vontade possamos querer interpretar ou substituir. O voluntarismo iluminado, por mais bem-intencionado que seja, é perigoso. Sem os pés assentes na terra, as prioridades serão as erradas e as reformas estruturais falharão. E podem comprometer a democracia.