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Em jeito de pessimíssimo testamento: no início era o Verbo, e o Verbo era Trump. Alguém que me desculpe a blasfémia, mas não há outra forma de abrir uma crónica sobre o movimento MAGA, que assume dimensões de fenómeno religioso. Mais valia chamar-lhe magaísmo. Decerto tem um deus no centro: omnipresente, verborreico, mas não clemente e compassivo. Aliás, ainda não se lhe descobriu uma qualidade, excepto o uso eficaz dos defeitos. Parece um deus de outras eras, cheio de contradições, falhas, excessos, canalhices. Mas inabalável. Um deus que não erra, ainda que errático e contraditório, porque os crentes vêem nele uma verdade maior. Um deus assim é talvez igual a completa liberdade, sem os freios das almas civilizadas: sem que os direitos, deveres e garantias o abalem, dispensando sobremaneira os checks and balances, fora do controlo das instituições. E encarando a liberdade de expressão como um valor condicional - concedido por obra e graça do espírito trump. A censura de aparência moral (e um pouco burlesca) que a cultura de cancelamento nos habituou nos últimos anos foi suplantada por uma outra censura também ela moral, também ela um pouco burlesca, mas agora despudorada e com a faca e o queijo na mão: chamar-lhe guerra cultural é eufemismo. Mais parece terror cultural. Da reprimenda ultrajante de J.D. Vance à Europa, ao combate à independência das grandes universidades, passando pelos cancelamentos de Stephen Colbert e Jimmy Kimmel (entretanto ressuscitado, ao que parece), o magaísmo dá-se como vítima numa espécie de fim dos tempos. Embora vencedor, é o movimento dos vencidos. Embora perseguidor, é o movimento dos perseguidos. A união desta dualidade tem certamente um cariz místico. O assassinato de Charlie Kirk, um acontecimento trágico em tantos sentidos, reforçou a dualidade, numa altura em que a violência política cheira a guerra civil. As cerimónias fúnebres foram um grande espectáculo emocional que é político, um grande espectáculo político que é emocional. Trump chegou a chamar a Kirk "o nosso maior evangelista, o nosso mártir." O plural majestático do discurso, a intervenção da viúva e a catarse colectiva da cerimónia, embora tenham tido o tom típico da grandeza norte-americana, foram uma espécie de liturgia, uma consagração no altar do magaísmo. Vance, o convertido, foi de novo o mais ortodoxo: "É melhor enfrentar um atirador do que viver com medo de dizer a verdade." Isto é, vão em paz e que Trump vos acompanhe.
*O autor escreve segundo a antiga ortografia