Corpo do artigo
A versão originária do projecto de lei concernente ao Plano Nacional de Luta Contra a Corrupção continha uma norma que previa a possibilidade de negociação da pena a aplicar ao arguido sem necessidade de proceder a julgamento. Felizmente, a AR não concordou com a mesma, que foi eliminada do texto final, não obstante haver muitos seguidores dessa solução. A negociação da pena não é fazer justiça. É um acordo entre MP e defesa com o beneplácito do juiz. Justiça efectiva-se com o julgamento no qual se defrontam em igualdade de armas uma acusação prosseguida pelo MP e, na esmagadora maioria, contrariada pela defesa. Expõe-se os factos criminosos indiciados, é produzida a prova quer da acusação, quer da defesa. Nas situações em que o arguido confessa o crime de que é acusado, o julgador tem que confirmar se o faz livre e conscientemente, reflectindo-se esta assumpção na medida da pena, que terá em conta, ainda, a gravidade do crime, o dolo e as circunstâncias agravantes e atenuantes que militam contra ou a favor daquele. São fundamentais tribunais com MP sujeitos exclusivamente aos princípios da legalidade e objectividade e juízes totalmente independentes do poder político. Ao permitir a negociação da pena, cair-se-ia, porventura, na violação da CRP, esvaziando totalmente o conteúdo das normas que contemplam a tramitação do processo penal. As aproximações do nosso sistema de organização do MP e do processo penal a outros, nomeadamente ao norte-americano, que pretende responder primeiramente à pressão da criminalidade, erigindo a eficácia no bem maior, prejudicam o nosso conceito tradicional e estruturante de justiça concreta para o ser humano concreto. Anotaram Figueiredo Dias e Costa Andrade que a história do MP nos EUA é a história da progressiva e irreversível expansão do seu domínio, acabando por se sobrepor em larga medida ao do Tribunal. O MP pode negociar o processo com a defesa, alterando ou eliminando a acusação, diminuindo a pena, tudo isto sem controlo de um juiz que, na prática, se limita a homologar o acordo alcançado - "plea bargain" - diz Cunha Rodrigues em "Em nome do povo". Cerca de 90% dos processos acabam nesta negociação. Os restantes demoram o seu tempo a ser julgados, anos. Os MP com tais poderes são agentes políticos que, como observa Cunha Rodrigues, fazem carreira que visa frequentemente os mais altos postos da hierarquia da União. Os "public attorneys" apresentam-se ao eleitorado com o número de condenações, sobretudo negociadas, pelo que o sistema norte-americano é com frequência, acusado de obedecer a uma lógica de produtividade mais do que a uma lógica de justiça. A justiça exige mais. Exige uma investigação objectiva e independente, com uma acusação, sujeita a contraprova em julgamento, levado a cabo no uso pleno da igualdade de armas. Do sistema norte-americano já adoptámos as soluções possíveis. Negociação de penas em processos complexos e por crimes graves teremos de dizer sempre NÃO.
a autora escreve segundo a antiga ortografia
Ex-diretora do dciap