O homem tinha a perna partida mas um discurso sem fracturas, pelo menos expostas. Enfim, a voz rachava-se e a mola interna da muleta canadiana, dentro do tubo de metal, guinchava queixas se ele a batia no chão ao endireitar-se no banco. Era um homem com certezas no seu infortúnio, a mais forte de todas é que não tinha culpa de nada. Talvez só num detalhe:
- Até fui eu que dei o palpite de pôr a sogra lá em casa e deu nisto!
Por causa da perna doente, deixaram-no falar sentado no banco dos réus, contra a regra. E o seu perónio calcificava-se lá em baixo na canela enquanto respondia, desenhando espirais sarcásticas com o indicador no ar, pois o homem não se calava no tom tragicómico de vejam lá no que eu me meti, ou no que me meteram a mim, que nunca fiz mal a ninguém!
Estava-se a chegar à parte do candeeiro no crânio da mulher, pormenor que, na opinião do homem, não tinha pés nem cabeça em termos não só de intencionalidade, como de física-matemática. Perguntaram-lhe se, então, as lesões na mulher que vinham descritas no relatório do Instituto de Medicina Legal tinham sido provocadas acidentalmente. E o homem disse:
- Foram, sim senhora: foi sem intenção, porque se fosse com intenção, com aquele candeeiro, desculpe, mas aqueles óculos...! O meu filho chegou e disse "então, ó pai, foste dar com o candeeiro na mãe?", eu disse-lhe "não te importas de me dar tu com o candeeiro?" E aí ele percebeu que era impossível! Se eu desse com o candeeiro na mãe, hã?, era nariz, era dentes... um candeeiro de inox, com duas varetas, uma base de seis quilos e meio, um metro e noventa de altura, aquilo não fazia os prejuízos que disseram, mas pronto!
Bom, eu é que não queria nada encontrar este senhor candeeiro numa esquina escura à noite ... um latagão de inox de quase dois metros com duas varetas na mãos... mas a conversa seguia agora para novas zonas desta violência doméstica. O advogado de defesa começou:
- Relativamente à cozinha, a área da cozinha...
- Tem meio metro quadrado, tem metade deste corredor aqui.
- Uma cozinha com meio metro de quadrado!, cortou o advogado como se gritasse o primeiro verso de uma ode urbanística.
- Sim, fui eu que fiz. Sim, é meio estreitinha, metade disto daqui para aqui, só cabe uma pessoa! E a porta tem dois metros, não são portas destas, explicou o homem, com um dedo panorâmico apontado a uma saída da sala de audiência. Nem o candeeiro passava, com o candeeiro na mão eu não passava! A cozinha tem sessenta centímetros, dá zero ponto seis...
O tema mudou para árvores anãs japonesas.
- E o bonsai?
- O bonsai era meu. Eu é que cuidava dele.
- O que é que significa cuidar?
- É regá-lo, tirar-lhe as folhinhas. Mas ele durou o quê, lá em casa? Um mês... eu pus lá o bonsai, como estava muito calor, era Verão, e muitas vezes não estávamos em casa, ligávamos o ar condicionado e o bonsai secou! Depois fui pô-lo em Campolide, no coiso dos bonsais. Ficou lá um mês e meio no hospital, depois veio e nunca mais recuperou.
E o defunto bonsai não voou escadas abaixo como um japonês no karaté, porque aquilo - nunca se viu arguido tão certeiro no sistema métrico - "são três metros e vinte de pé-direito, é um prédio do século XVIII!", e o vaso de cerâmica continua hoje intacto, o bonsai é que não. Até para a semana, talvez haja novidades deste drama familiar que atravessa séculos e continentes.
(O autor escreve segundo a antiga ortografia)

