Dan Ariely é um professor de economia que se tornou famoso, fora da academia, por alguns dos seus livros sobre racionalidade e tomada de decisões. Um dos exemplos mais conhecidos baseia-se na sua própria experiência. Ariely sofreu um acidente de que resultaram queimaduras extensas e muito graves por todo o corpo. Conta ele que um dos momentos mais dramáticos, por extremamente doloroso, ocorria sempre que precisava de substituir as ligaduras. Quando chegava a altura, tentava negociar com os enfermeiros o ritmo a que tal se faria que ele pretendia mais lento do que acabava por acontecer. Mais tarde, estudou o assunto tendo concluído que os pacientes consideravam sentir menos dores quando as ligaduras eram retiradas lentamente e não de uma vez só, como os técnicos preferiam (por estarem convencidos que a dor súbita, ainda que muito intensa, se desvaneceria rapidamente). Dir-se-á que é tudo uma questão de grau. Por exemplo, quando removemos um penso, há quem opte por o fazer devagar, enquanto outros o retiram de uma só vez. Talvez a dor seja menor no primeiro caso, mas a diferença não será muita.
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Há algum paralelismo entre esta história e o tratamento que convencionámos com a troika. Arrumada a ilusão de que poderia haver uma austeridade expansionista, ficamos a saber que a coisa ia doer. No caso da nossa economia, a extensão e gravidade das "queimaduras" foi suficientemente grande para não passar com um simples curativo. E, também aqui, os técnicos do FMI, União Europeia e BCE parecem preferir procedimentos de choque. A diferença está em que, quem fala pelo doente, assina por baixo, não por masoquismo mas, como no caso da saúde, por preconceito ou, pior, para agradar aos terapeutas. Se as conclusões de Ariely se puderem generalizar à economia, para igual resultado final (a cura), estamos a submeter o enfermo a mais dor e castigo do que seria necessário.
Sabe-se algo mais concreto sobre o assunto? Muitos estarão lembrados da polémica sobre os multiplicadores dos impactos dos cortes na despesa. Em Julho deste ano, o FMI divulgou um estudo (www.imf. org/external/pubs/ft/wp/2012/wp12190.pdf) que, com base em experiências anteriores, questionava a política adoptada. Durante uma recessão, as consolidações drásticas "à cabeça" agravariam os custos do ajustamento, reflectindo-se na redução da produção e condicionando, deste modo, a redução do peso da dívida no PIB. Tal facto pode, por sua vez, ter impacto no mercado da dívida soberana, pondo em causa todo o esforço efectuado. Os autores recomendam cuidado com os cortes excessivos de despesa, sugerindo um ajustamento gradual e calibrado em termos de reduções da despesa e aumentos de impostos.
É apenas um estudo. Não sendo a economia uma ciência exacta, é provável que apareçam outros a contradizê-lo. Lendo as conclusões, parece que o nosso Governo e os seus conselheiros fizeram, até agora, tudo mal e preparam-se para fazer pior. Acreditando no que nos têm dito e nos números que nos apresentam, já cortaram muito (e mal) na despesa. Sem grande efeito, como parece seria de esperar. Perante os maus resultados, preparam-se para fazer um aumento brutal dos impostos cujos efeitos recessivos são conhecidos e toda a gente antecipa (o que confirmará a previsão recessiva inicial!). Não satisfeitos, anunciam mais um corte de despesa. Quando se entra nesta espiral recessiva, é difícil sair dela em especial se, quem puxa os cordelinhos, continua a acreditar que a receita está certa. E a persistir na experiência.
Pouco importa estar, agora, a discutir eventuais erros passados. Quem tomou as decisões fê-lo convencido da sua razão. Pior do que os erros económicos terão sido os erros políticos: perdeu a disponibilidade do "doente" para colaborar, alienou a boa vontade dos parceiros sociais, hostilizou a Oposição. E parece não ter aprendido nada. A pressa com que quer introduzir as reformas no Estado social e os cortes na despesa é, no longo prazo, contraproducente. Não havendo o consenso mínimo, um próximo governo revertê-las-á. Já vimos este filme. Põe ligaduras, tira ligaduras. Pobre doente.