A evolução da dívida e do défice tornou inadiável o debate sobre as funções do Estado. É uma mera constatação quantitativa: não geramos riqueza suficiente. O corte pode não ser de 4 mil milhões, pode-se procurar renegociar os prazos e as condições da dívida e tentar mil outros expedientes.
Corpo do artigo
Se não reduzirmos a despesa corrente, não temos futuro. Não adianta argumentar que é uma discussão falaciosa - mesmo que o crescimento seja incluído na equação, o actual nível de despesa pública é insustentável tornando-se, ele próprio, inimigo do crescimento pelas exigências tributárias que lhe estão associadas. Convém relembrar que não há uma árvore das patacas e que, como estamos a aprender da maneira mais dolorosa, uma despesa acaba, sempre, por ter de ser paga (mesmo que por gerações vindouras). Mal se compreende, por isso, a recusa do PS em participar neste processo: no dia em que voltar ao poder, terá de enfrentar o mesmo desafio, contribuindo para desacreditar ainda mais (se é possível) a classe política.
Há várias formas de conduzir o processo da reforma do Estado. Uma, que parece ser a preferida do Governo, é sobretudo ideológica: definem-se as funções do que deve competir ao Estado e, depois, vai-se moldar o que existe à imagem e semelhança do que se pretende. As divergências são, logo à partida, tantas que gerar o consenso mínimo necessário para uma empreitada destas é missão impossível. A opção por esta via tem o perigo da reversibilidade: uma vez alterada a maioria política, haverá a tentação de fazer voltar tudo ao início. Uma alternativa expedita consiste em tentar, primeiro, chegar a um acordo sobre qual o peso que se admite que a despesa pública possa ter no produto ou, o que vem a dar ao mesmo, quanto achamos razoável pagar pelo serviço público. Seria preciso começar por nos entendermos sobre o que faria parte da "despesa". Ultrapassado esse obstáculo, talvez fosse possível o entendimento, dado que esta metodologia admite o crescimento da despesa com o do PIB e permite alguma margem de manobra para que cada governo molde o bolo total em função das suas prioridades políticas. Talvez se pudesse ser, ainda, um pouco mais ambicioso e tentar criar consensos sobre "mínimos civilizacionais" (no rendimento, na saúde, na educação) que estabeleceriam patamares incompressíveis de despesa.
Qualquer que seja a via escolhida, haverá sempre vários adversários: os interesses instalados no aparelho de Estado entendido no sentido amplo (desde o poder central até ao local, passando por empresas, institutos públicos e sindicatos); o imobilismo e a ilusão dos direitos adquiridos; o equívoco sobre a abundância dos recursos (e a não necessidade de fazer escolhas). Ceder a estas forças é alimentar as condições para um clima de fractura interna, de "guerra civil" entre os que pagam impostos e os que não pagam; entre gerações; entre trabalhadores do sector privado e público.
Essa oposição é inevitável. Combatê-la exige clareza de propósitos e uma determinação que só um acordo político e social alargado permite. Tudo ao contrário do que têm sido a prática e a postura do Governo. Ainda se houvesse coerência de princípios! Obcecado com o défice, não hesita em trocar os "2/3 do lado da despesa" pelos "2/3 do lado da receita". Recusa aumentar a sobretaxa sobre os rendimentos mais elevados, mas não pestaneja na tributação do subsídio de alimentação (coitados dos restaurantes!). Cede ao ensino Superior à custa do Básico e Secundário, à revelia de tudo o que se sabe deverem ser as prioridades no financiamento da educação (mas, que diabo, os putos não vêm para a rua manifestar-se, nem os directores de escola têm a mesma audiência dos reitores - e não estou a dizer que estes giram mal as universidades). Como já tinha cedido no poder local, lixando mexilhão (as freguesias), salvando o tubarão (municípios). Que Estado resulta destas decisões avulsas? Qual a sua coerência? Quem assim decide, será capaz de se manter fiel a um pensamento estratégico? Pode alguém ser quem não é?
O autor escreve segundo a antiga ortografia