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Não tenho sorte nenhuma ao jogo. Então, no totobola, já quase deixei de tentar. No início, ainda tentava usar de alguma lógica. Às segundas-feiras de manhã, chegava mesmo a recortar as tabelas classificativas dos jornais para estudar em pormenor a performance das principais equipas, acabando por cometer verdadeiras loucuras, à época, como era apostar "duplas" e "triplas".
Nunca ganhei nada que se visse. Jamais experimentei a alegria de conseguir aquele "doze" que, por defeito, mal supria o investimento. Quando o totoloto apareceu, cedo me rendi à novidade. Chegava a preencher dez apostas por semana, na certeza de que se assinalasse todos os números, do 1 ao 45, em todos haveria de acertar.
É acertava, é claro! Só que em diferentes apostas. Alguns aqui, outros além, muitos "uns", escassos "dois", e raras vezes aquele "três" que, por defeito de igual modo, raramente cobria o valor investido.
Mal grado os antecedentes, nunca deixei de tentar. Jogo agora no euromilhões, bizarria na qual, só no ano passado, os portugueses apostaram 203 mil euros por hora. Os prémios são consideráveis e custa-me desistir por desistir. Somente, abandonei a tarefa de, semana após semana, ter de pensar nos quadradinhos onde colocar a cruz quando se sabe, desde há muito, que a Sorte é filha do acaso. Por isso, a táctica que agora utilizo tem muito pouco a ver com lógica. Às sextas-feiras de manhã, quando os ponteiros do relógio se apressam a esconder o meio-dia, sento-me numa mesa de canto de um pequeno café do meu bairro junto a um casal de reformados que sempre para por ali e, enquanto ele se dedica ao fenómeno da raspadinha, fico atentamente à espera que ela comece a falar, vendo-o de corpo e alma à procura do milhão que, cartão após cartão, nunca lá está:
- O que vai ser do nosso Beto, Fredo? De amanhã a 7 dias, vai fazer 31, e eu ainda não o vi calhado à mesma mulher por mais do que 2 meses que fosse. Nós os 3, lá em casa, é que já não dá. A tua reforma mal dá para pôr a tocar 1 cego, da minha nem vale a pena falar, 49 euros de renda por mês, fora os 30 euros da água, mais o gás e a electricidade? Ainda se me lembra do frango a 26 escudos, Fredo, do azeite a 35, do óleo a 19, vê se me falas com ele, Fredo, tu vê se o chamas à razão, nós 2 já não vamos para novos e ele fica-nos para aí, sozinho, sem ninguém que cuide dele, inda se me arranjasse uma ricaça de 20 ou de 40, para o caso tanto fazia, tu estás a ouvir, Fredo? tu estás-me mesmo a ouvir, Zé Alfredo? Importas-te de prestar atenção ao que eu estou a dizer, por 5 minutos que seja?
Quando ela atinge os catorze números, corro a registar o boletim. Sei que se ficar por ali, à cata de mais algarismos, é grande a tentação de avançar para mais apostas, e convenci-me de que, para o caso, dá igual jogar muito ou pouco. Fico-me pelas duas tentativas, uma à base de números baixos e outra onde junto os mais altos. Os algarismos mais pequenos uso-os para apostar nas estrelas. E há sempre um número que ela repete por acaso, o que me leva a investir nessa hipótese duas vezes: considero-o o seu palpite. Já prometi a mim mesmo que se me sair um bom prémio, lhes ofereço uma boa maquia que lhes sirva para a vida, pelo menos o suficiente para o Beto ficar bem.
E, apesar da fortuna não me visitar amiúde, o instinto feminino, esse sei que é uma certeza, pelo que ao registar as apostas nunca deixo de indagar se o que aquela mulher disse não terá um outro sentido - se, como com a pitonisa de Delfos, haverá uma grande razão por detrás disto tudo - e sempre cresce em mim a esperança de que, se nada existe por acaso, pode ser que seja desta.
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