<p>A asneira e a mitificação da mesma são filhos da ignorância. Esta é uma realidade permanente num País, o nosso, em que a sistémica falta de rigor se alia à tendência para opinar sobre todos e sobre tudo. Deve ser o único sítio do planeta onde se é especialista de futebol à tarde e analista económico à noite, dissertando ainda ao lanche sobre sociologia política. Face a esta dinâmica pouco exigente é vulgar uma mentira repetida meia dúzia de vezes passar a ser lei bíblica.</p>
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Assim, um dos mitos urbanos da ignorância nacional é o que aponta dogmaticamente a actual geração de autarcas como gente impreparada, má gestora, pouco dada a uma governação transparente. Sobre esta última variável nem vale a pena alongar a argumentação. A objectividade fala por si. Os autarcas que lidam com negócios de tostões - não são eles quem negoceia fornecimentos de petróleo, adjudica auto-estradas, aeroportos ou TGVs, compra armamento ou aviões - são escrutinados anualmente por um número infindável de inspecções permanentes (num quadriénio normal recebem inspecções alargadas do Tribunal de Contas, Inspecção Geral do Território e Inspecção Geral de Finanças). Para além disso são escrutinados diariamente por uma opinião pública exigente e próxima.
É pois lamentável que a investigação ou até a condenação de meia dúzia de autarcas em mais de três décadas de democracia, veja o mediatismo desses casos raros obnubilar o que deveria ser a principal lição a tirar: com milhares de presidentes de câmara, de juntas de freguesia e vereadores em funções desde há 35 anos, cabem nos dedos de uma mão as investigações e denúncias que após escalpelizadas acabaram em acusações ou condenações. Numa lógica de observação do binómio escrutínio permanente / penalização, tenho dúvidas que qualquer outro grupo socio-político ou sócio profissional passasse tão bem por tal teste apertado de probidade.
Quanto à competência, uma visita guiada ao País real fala por si. A qualidade de vida em cidades do interior subiu em flecha, cidades médias atingiram patamares europeus de organização. Sem maniqueísmos político partidários, é evidente considerar que foram autarcas e não governantes nacionais, quem "inventou" a qualidade de vida em cidades de subúrbio, como Matosinhos ou a Maia, foram autarcas quem qualificou a costa de mar, em Vila do Conde ou na Póvoa do Varzim, foram autarcas que fizeram o milagre da requalificação moderna, em Viseu, Bragança, Chaves, Mirandela, Óbidos, Évora ou Albufeira, para só referir alguns casos exemplares.
Complementarmente, quando se fala na qualidade da gestão ao nível local, vem sempre à baila a pretensa excessiva dívida dos municípios. Neste caso o coro contempla governantes incapazes, analistas ignorantes, comentadores preconceituosos. Se os primeiros têm a desculpa de procurarem sacudir a água do capote da sua crónica incompetência, os outros não passam de uns pobres diabos que não sabem do que falam.
Mas vamos a factos. Os mais de trezentos municípios Portugueses são, em percentagem do PIB, dos menos financiados pelo Estado em toda a União Europeia. Essa realidade conduziu a um sub financiamento crónico a que sucessivos governos foram dando machadadas gigantes. Sempre que há uma crise, o poder do Terreiro do Paço, aplica sempre a mesma receita: aumenta impostos, corta direitos sociais e sangra financeiramente o poder local. Assim aconteceu com um governo Cavaco Silva - que congelou o aumento de transferências para as câmaras municipais, com o governo Durão Barroso - que numa noite, sem qualquer compensação, reduziu quase a zero a receita de IMT e a 50% a receita de IMI, com o governo Sócrates que, em dois anos, decapitou em 12% a receita de IMI e indexou aos PEC novas diminuições das transferências para o poder local.
Em paralelo com estes descabelados ataques as autarquias continuam, paradoxalmente, a assumir mais competências que o governo despreza - da justiça, à segurança, passando pela educação, habitação e acção social.
Com tudo isto, utilizando dados oficiais retirados do site da Direcção Geral das Autarquias, os mesmos que o Secretário de Estado responsável pelo acompanhamento do poder municipal usa para denegrir os autarcas, o passivo global consolidado de todas as Câmaras do País, pasme-se, resultado do exercício de poder desde 1975, ronda os 5 mil milhões de euros. Para se ter uma noção do significado deste valor em termos comparativos, ele significa algo semelhante ao que o Estado terá que mendigar para se financiar num único mês do ano orçamental que agora começa! Menos de um quinto do passivo acumulado pelas cinco maiores empesas públicas do sector dos transportes!
É igualmente degradante acenar com a dívida de curto prazo e com o consequente atraso de pagamento a fornecedores. Todos os meses o Estado se financia para pagar salários e dar resposta a esses mesmos fornecedores, contudo, mesmo perante a actual dramática quebra de receitas resultante do abrandamento da economia, tal prorrogativa é liminarmente recusada aos autarcas. Daí a fatalidade de deferir pagamentos, ninguém é milagreiro.
Finalmente duas referências finais. Uma sobre a hierarquização do passivo dos municípios e uma outra sobre o tal preconceito de má vontade ignorante.
Todos os anos, quando da publicação dos resultados anuais de gestão, os passivos são elencados de acordo com o seu valor absoluto, num exercício de incompetência ou má-fé. É evidente que, utilizando essa lógica, Lisboa, Gaia e Porto, estarão eternamente nos primeiros lugares. No entanto esse método tem o mesmo valor que um que tivesse o desplante de comparar a dívida dos Estados Unidos da América com a de Malta.
A dimensão do passivo de uma autarquia só deve ser observado em termos relativos e, tal como acontece com o passivo do Estado, ser indexado a uma variável fixa. Para comparar os passivos de Estado utiliza-se o valor do PIB, para fazer essa avaliação com os Municípios, só há uma forma ajustável à nossa realidade: fazer uma divisão desses passivos pelo número de cidadãos servidos - porque o número de cidadãos é o principal factor de cálculo para decidir as transferências do Orçamento de Estado para as autarquias. Tenha-se pois a lucidez de uma vez por todas falar verdade, apresentando-se à opinião pública o único retrato correcto. O que evidencia o endividamento municipal per capita.
Para terminar, um exemplo recente sobre o habitual enfoque na distorção grosseira da imagem do poder local. Há dias, um jornal dito de referência, e atrás dele, quase toda a restante comunicação social, titulava em parangonas: "Autarquias admitem mais de dois mil funcionários mesmo após as restrições de admissões serem decididas pelo Governo". Mentira descarada! O Governo, este Governo, lançou o projecto de complemento curricular no ensino básico, através da contratação subsequente de técnicos pelas autarquias. Todavia, como não definiu uma carreira, antes condenando esses profissionais uma injusta precariedade, os mesmos têm que ser "despedidos" todos os anos em Agosto, para serem recontratados em Setembro! Ora são estas as tais admissões malevolamente denunciadas! Enfim!
Esta prosa é pois uma homenagem singela a milhares de homens e mulheres portuguesas que se entregam solidariamente ao serviço da comunidade numa das mais bem conseguidas caminhadas da jovem democracia Portuguesa. Bem fora que tal se pudesse afirmar em relação aos resultados de gestão do País no seu todo.