Um juiz conselheiro do Supremo Tribunal de Justiça (STJ) ridicularizou esta semana uma iniciativa do ministro da Economia, Álvaro Santos Pereira, que visa atrair reformados da Europa do Norte para o nosso país. Num pequeno texto publicado num blogue de magistrados denominado «Sine Die», Eduardo Maia Costa, juiz conselheiro da 3.ª Secção Criminal do STJ, reduz a proposta ministerial a uma anedota.
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«Quando ouvi falar da ideia pareceu-me uma daquelas boas anedotas, na rica tradição do anedotário nacional», escreve o juiz, que logo acrescenta: «Mas afinal não era anedota, era uma proposta séria (?) do ministro da Economia, para a recuperação da dita: transformar Portugal na Florida da Europa!». Mais adiante, Maia Costa ironiza afirmando que «Portugal vai tornar-se um enorme lar de idosos ricos, arianos de preferência, para bem deles e nosso» e interroga-se por que «não nos tínhamos lembrado antes desta nova galinha dos ovos de ouro». E conclui: «A recuperação da economia está em marcha!». A publicação deste texto ocorreu apenas um dia depois de o ministro Álvaro Santos Pereira ter anunciado na Assembleia da República que o Governo pretende lançar um programa destinado a atrair os reformados do Norte da Europa para viver em Portugal durante parte do ano, equiparando as suas poupanças às remessas dos nossos emigrantes.
Infelizmente, este caso surge no seguimento de muitos outros em que magistrados criticam publicamente os poderes executivo e legislativo, sobretudo as leis que deviam acatar e respeitar por serem eles próprios a aplicá-las. Felizmente, os titulares dos cargos políticos não têm criticado as decisões dos tribunais, esperando-se que Álvaro Santos Pereira não venha agora comentar publicamente os acórdãos relatados ou subscritos por Maia Costa no STJ.
É consabido, pelo menos desde Montesquieu, que os juízes só devem falar publicamente através das suas sentenças. Esta ideia é um corolário do princípio da separação de poderes que, na sua pureza original, impõe que os (titulares dos) poderes ou órgãos soberanos do Estado não podem interferir uns com outros. Impõe, sobretudo, que os titulares dos poderes políticos não devam interferir com o funcionamento dos tribunais nem com as suas decisões e que os magistrados não devam interferir com o funcionamento do Parlamento, do Governo e do presidente da República nem com as suas medidas.
O dever de acatar este princípio (estruturante do estado de direito e da democracia) impõe-se a todos por igual, não sendo lícito que alguns persistam em o violar. Contudo, há em Portugal magistrados que entendem que o podem fazer como simples cidadãos. Essas posições relevam de uma visão totalitária do Poder Judicial (ou, simplesmente, do Poder), segundo a qual todos têm de prestar contas ao Poder Judicial e este não presta contas a ninguém, excepto a si próprio. Essa ideia de que um magistrado, despindo a beca, se transforma num cidadão como outro qualquer é uma ideia perversa que levou à descredibilização da Justiça perante a sociedade democrática, nomeadamente, à degenerescência do sindicalismo no Poder Judicial. Quem aceita determinadas funções tem, naturalmente, o direito de beneficiar de todas as regalias e prerrogativas que elas propiciam (coisa que os magistrados fazem com inaudito zelo), mas tem também o dever de aceitar as restrições que elas acarretam (coisa que muitos se recusam a aceitar).
Quando juízes, ainda por cima do STJ, apoiam ou criticam, publicamente, propostas políticas do Governo, estão a descredibilizar-se a si próprios como magistrados e ao órgão a que pertencem, pois deixam de dar garantias de imparcialidade no exercício da sua função. É que a um juiz, tal como à mulher do outro, não basta ser imparcial, tem de parecê-lo sempre, ou seja, tem de actuar em todos os momentos da sua vida de modo a que as pessoas acreditem que ele será imparcial quando for chamado a julgar; ou, pelo menos, de modo a que as pessoas não se convençam do contrário. É certo que a ociosidade que grassa entre as dezenas e dezenas de conselheiros do STJ torna essa abstenção cada vez mais penosa. Mas esse é mais um sacrifício que o estado de direito e a sociedade democrática lhes pedem.