A Internet é como Cavaco Silva: nunca se engana e raramente tem dúvidas. Eu sei que é estranho comparar um ex-presidente da República que ficou, em tempos, espantado com a possibilidade de alguém do "exterior" poder entrar no seu computador para ver os seus emails, com um sofisticado sistema de redes que permite a troca de dados através de um protocolo comum (sim, fui à Internet pesquisar "o que é a Internet?", acredito que foi para isto que a criaram).
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Os sábios que frequentam as redes sociais têm essa autoconfiança excessiva de Cavaco, e pior: apontam prontamente o dedo (muitas vezes o do meio) a quem erra.
Esta semana foi especialmente intensa no que toca a fogueiras virtuais. Começámos com um adolescente que escreveu uma carta a Portugal, avisando o país de que "não é tão grande como outrora", continuámos com o programa da RTP que entrevistou um neonazi pai de trigémeos, e desembocámos na avassaladora história do bebé encontrado no lixo. A três histórias tão diferentes a Internet respondeu da mesma forma: com infantilidade. Começou por troçar de Manuel Bourbon Ribeiro - e atenção que eu sou a favor da troça, e poria até "trocista" no meu cartão de visita se ainda se usassem cartões de visita - o que me faz confusão é a sobranceria de quem parece nunca ter tido 17 anos. Se há boa idade para se dizerem coisas estúpidas é essa. Ter 49 e passar tardes inteiras no Twitter a insultar um miúdo porque tem um apelido francês e disse umas barbaridades sobre o aborto ou a lei da mudança de género, parece-me mais preocupante.
Agradeço aos deuses por, no ano da graça de 2003, as redes sociais ainda não bombarem como agora (em 2003 ainda se usava a expressão bombar), é que eu tinha 17 anos nessa altura e fazia muita coisa estúpida que felizmente não ficou registada. É claro que o mais certo é que o Manuel não mude de ideias. Parece-me daqueles jovens que está tão certo das suas convicções que morrerá com elas (mas só quando Deus o quiser levar, sem eutanásia, claro), e seria provável que o víssemos na bancada do CDS daqui a uns anos, se o CDS continuasse a existir. Mas por isso mesmo acredito que teremos muito tempo para rebater os seus argumentos (na verdade são tão frágeis que bastariam cinco minutos), não vale a pena massacrá-lo já, nem dar demasiada importância a um texto que podia muito bem ser um trabalho da área escola. Era engraçado que um qualquer bug (ou o Rui Pinto) revelasse de repente os textos escritos pelos utilizadores quando estavam a fazer o 11.º ano.
Claro que muitos escapariam a este vexame, já que só começaram a escrever quando entraram no Facebook. Foi lá que me deparei com a revolta popular contra a RTP. Percebi que, no programa da tarde, Tânia Ribas de Oliveira tinha entrevistado um neonazi, envolvido nos anos 90 no homicídio de Alcindo Monteiro. Resta dizer, para os menos atentos (ou mais ocupados) que o tema da entrevista não era esse, apesar de terem surgido logo comparações com o convite da TVI a Mário Machado para falar numa manifestação pró-Salazar. Mais uma vez a Internet correu em fúria na direção do prevaricador (a Tânia, não o criminoso). Já se sabe que nessas alturas é impossível parar para pensar, sob pena de sermos atropelados por quem vem atrás. Resta-nos seguir na mesma direção. Ninguém pôs a hipótese de ter sido apenas por desconhecimento.
Por mais parvo que isso nos pareça, até porque estava literalmente na testa. Para quem comenta na net tudo é óbvio. Acertam no Totobola à segunda-feira. Nunca se deixariam enganar. Reconheceriam à primeira um skinhead, mesmo que estivesse de cabelo comprido e rastas, ou numa instituição de solidariedade social. Topariam logo o apelido "Cerejeira" e lembrar-se-iam do caso. Descobririam a cura para o cancro, se lhes dessem oportunidade. E novos planetas. Nunca abandonariam um bebé que acabaram de trazer ao Mundo, nunca o poriam num ecoponto, nunca fugiriam. Talvez. E ainda bem. Mas também nunca foram sem-abrigo, nunca passaram por um milésimo das dificuldades daquela pessoa. Que não a ilibam a ela mas que nos impedem a nós de sabermos o que faríamos no seu lugar. "Põe-te nos meus sapatos" é um repto ao qual é difícil responder, sobretudo quando quem o pede nem sequer sapatos tem.
*Humorista