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Sempre que vou a um casamento, tenho a ideia de que os noivos, por mais que prometam amar-se e respeitar-se, nunca conseguirão ser verdadeiramente fiéis porque se casam um com o outro a quatro. A impressão é de tal ordem que julgo ouvir os votos: "na alegria e na tristeza, na saúde e na doença, com e sem dados móveis, até que a morte nos separe."
Na alegria e na tristeza a gente ainda aguenta, tal como na saúde e na doença: o que seria da vida sem os caminhos profundos, as mais belas contrariedades e as mais tristes alegrias? Seria qualquer coisa excepto vida. A dificuldade dos votos é a parte dos dados móveis.
Em rigor, ninguém vive hoje numa relação monogâmica. Ouvi muitos podcasts sobre poliamor, li algumas teses de mestrado e assisti a bastantes explicações no YouTube para saber que hoje qualquer casal padece dos mesmos problemas dos poliamorosos. Estes desamparados chamam liberdade a regras confusas e muito trabalhosas que se resumiriam facilmente assim: um para todos e todos para nenhum.
A nossa relação com os telemóveis está tão intimamente instituída que nem traição se chama. Se espreitarmos um restaurante em que casais têm uma noite romântica, reparamos que vão sempre em parceria. A mesma coisa se os virmos na praia, no carro, na espera para as caixas dos supermercados, na retrete, na cama, enfim, simplesmente se os encontrarmos, é raro apanhá-los sozinhos.
Quanto a mim, sei que não posso competir: há lá maior intimidade do que ir no bolso da minha mulher, encostar-me à cara dela e segredar-lhe palavras ao ouvido, conhecer a resposta a qualquer pergunta que a inquiete, cantar-lhe as melhores músicas, mostrar-lhe os melhores vídeos, fazê-la rir a toda a hora?
Gerir tal dois em quatro dá uma grande trabalheira. Medir-me com quem tudo sabe sobre quem amo e que tem como objectivo a voragem total da sua atenção até à última percentagem da bateria, aliada ao conhecimento dos códigos bancários, às palavras-passe e às tentações mais estranhas do algoritmo. Não é só uma trabalheira, trata-se de uma tarefa sem fim.
Nos momentos de ciúme, penso em ir buscar o martelo. Tenho ganas de despedaçar o telemóvel da minha mulher e dizer-lhe: volta para mim. Mas sei que a vingança seria rápida e proporcional, o mesmo martelo estilhaçaria o meu telemóvel, com ele o que me segreda ao ouvido, as canções, as notícias servidas à minha imagem e semelhança, os vídeos escolhidos a pensar em mim. Embora eu permaneça fiel na alegria e na tristeza, na saúde e na doença até que morte nos separe, o martelo fica sempre na caixa de ferramentas porque nunca arriscaria a retaliação.
*O autor escreve segundo a antiga ortografia