Nos idos de 1969 houve uma banda de música, tão influente quanto efémera, chamada Filarmónica Fraude. Numa das canções do seu único LP (Epopeia), agora reeditado, diz-se "só marinheiros e escravos se afundam com a nau". Uma boa metáfora para a forma como quem participou nas manifestações deste fim-de-semana se parece sentir. Uma metáfora que seria, também, uma resposta apropriada a essa outra que Vítor Gaspar usou no Parlamento quando invocou os heróis do mar e a sua capacidade e coragem para enfrentar as maiores tormentas.
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Por demérito do Governo, não há quem não se sinta marinheiro ou escravo. Com excepção das empresas que conseguiram redescobrir o caminho, marítimo, aéreo ou terrestre, para a exportação ou que já tinham posto pé em novos mundos, todos têm razões de queixa. Para os que mantiveram o emprego, os impostos conjugados, no caso dos funcionários públicos, com outras medidas administrativas, tiraram-lhes uma boa parte do rendimento. Algo de semelhante se passou com os reformados, em especial os das pensões milionárias (e já se sabe quão generoso é o actual Executivo na distribuição desse adjectivo). Mesmo os accionistas das empresas cotadas, com uma ou duas excepções, viram o valor das respetivas empresas reduzidos para uma expressão pífia, com particular destaque para os bancos (é isso, os verdadeiros banqueiros perderam riqueza numa proporção que ninguém inveja). Acrescente-se-lhes o milhão e tal de desempregados e desencorajados e os empresários que vivem na corda bamba e percebe-se que, em rigor, se o motivo for protestar, quase todos podiam ter estado, sábado, na rua. A disparidade de motivações, patentes nas declarações e nos cartazes, confirmam-no.
Alguns deixarão de ler o artigo aqui, por entenderem que estou a branquear, por exemplo, a diferença entre pobreza absoluta e perda relativa de rendimento ou a fazer de conta que Portugal não tem um problema sério de assimetria na distribuição de rendimento. Não estou. Apenas quis sublinhar que, se o propósito fosse expressar o descontentamento, o número de pessoas nas ruas podia ser muito maior. Mostram-no as sondagens. Não é assim por razões de pudor, desencanto, desesperança e muitas outras que os sociólogos conhecem melhor do que eu (quantos verdadeiramente pobres estavam lá?).
De qualquer forma, foram muitas as gentes, as suficientes para que ninguém possa ficar indiferente. E, no entanto, o que fazer com estas manifestações? O maior equívoco está no lema! É que nós podemos mandar a troika dar uma volta, mas não podemos querer isso e o dinheiro deles ao mesmo tempo. O tempo de "o dinheiro para nós e as regras para os outros" não volta mais. A imensa maioria dos manifestantes está lá com a generosidade dos ingénuos. Quer mudança, um emprego, melhores salários ou pensões de reforma, saúde, educação. Haverá alguém que não queira? Que fazer?
O busílis está no caminho, estreito e exigente, que o Governo, por arrogância ou incompetência, não quis, ou soube, explicar. Um caminho que exige um esforço solidário, e não vanguardas iluminadas, e que não tolera, em lugares de comando, personagens como Miguel Relvas, que governa como canta a "Grândola".
Se Passos Coelho souber ler os sinais das manifestações para além do ruído mediático, tem hipótese de concluir a legislatura. Para tal tem, como se costuma dizer, de arrepiar caminho numa lógica 4R. Remodelar. Recuperar o PS para o processo, comprometendo-o na reforma do Estado, como Gaspar e Portas já perceberam. O que ajudará na negociação para mais tempo e, melhor ainda, menos dinheiro. Catroga, que sabe disto como poucos, fala em 2016 para levar o défice aos 3%. Um estudo do BPI aponta que há margem para os juros do empréstimo europeu baixarem, permitindo uma poupança total de 15 mil milhões. É uma base de negociação. Ressuscitar Cavaco Silva e empenhá-lo nesta empresa constitui o terceiro R.
No rescaldo das eleições italianas, esta é a altura certa para, quarto R, recolocar a política no posto de comando. Mesmo os burocratas da troika o hão-de ter compreendido.