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Os nove juízes que integram o Supremo Tribunal Federal dos Estados Unidos da América são nomeados para toda a vida. Só podem ser destituídos em circunstâncias excecionais, caso se verifique a prática de uma infração grave. Por isso, as vagas vão sendo preenchidas à medida que morrem ou renunciam voluntariamente com problemas de saúde ou idade avançada. A sua nomeação é da competência do presidente mas é obrigatoriamente precedida por uma audição pública no Senado, perante a comissão parlamentar da justiça que os pode rejeitar. Habitualmente, o nome proposto pelo presidente é negociado entre os dois partidos, todavia, conquistada a presidência e com maioria nas duas câmaras, os republicanos têm procurado alterar os equilíbrios políticos no tribunal por forma a conseguir uma maioria sólida, favorável ao seu programa reacionário. Foi assim que impediram o presidente Obama de preencher uma outra vaga no Supremo, no decurso do último ano do seu mandato.
O juiz Brett Cavanaugh, agora proposto por Donald Trump, é uma peça essencial nessa estratégia tanto mais que as sondagens apontam para a probabilidade de os republicanos perderem a maioria já nas eleições parciais que se vão realizar em outubro. Percebe-se a pressa, mas no último momento, já com a audição praticamente concluída, uma senadora democrática enviou à comissão parlamentar a carta de uma professora de Psicologia que acusa o juiz indigitado de assédio sexual, manifesta a disposição de depor perante o Senado e exige uma investigação do FBI. O caso teria ocorrido numa festa particular, certa noite verão, no princípio dos anos oitenta, quando ambos eram adolescentes. Donald Trump, que já conta com mais de uma dezena de denúncias por assédio sexual, foi por isso aconselhado pelos assessores da Casa Branca a não se pronunciar sobre a alegada ocorrência, não fosse prejudicar ainda mais o seu incumbente. Este já negou tudo, perentoriamente, e o cúmplice da tentativa de violação, identificado na carta, também desmentiu o que alegadamente teria acontecido há cerca de 35 anos. Porém, a documentação que acompanha a denúncia confere-lhe alguma consistência e o Senado decidiu ouvir a suposta vítima e confrontar o candidato na próxima semana. Não é a primeira vez que um candidato a juiz do Supremo é confrontado com acusações de assédio sexual. A uma acusação análoga resistiu o atual juiz Clarence Thomas, nomeado pelo presidente George Bush, em 1991. Se a maioria dos membros da comissão do Senado, após as audições previstas, concluir que Brett Cavanaugh mentiu sobre esta matéria, a sua candidatura será rejeitada. O resultado é neste momento imprevisível.
Nas audições realizadas até agora, o juiz proposto por Donald Trump tem sido confrontado com graves suspeitas. Foi acusado de omitir informação comprometedora sobre a sua atividade na Casa Branca, ao serviço do presidente George W. Bush, durante a guerra contra o Iraque. Tem sido igualmente questionada a sua verdadeira posição quanto à admissibilidade do uso da tortura no interrogatório de suspeitos, quanto ao tratamento dos presos ou quanto à interrupção voluntária da gravidez. Sessenta mulheres, antigas colegas, vieram por escrito certificar a sua exemplaridade em matéria de género e de sexo. Também quanto à extensão das imunidades do presidente, não esclareceu as ambiguidades sobre o que ele verdadeiramente pensa. Sem dúvida, uma tentativa de violação não consumada, em estado de embriaguez, é um crime muito grave. A violência entre adolescentes é uma prática intolerável. Mas não é do julgamento e da punição pela prática de tais crimes que tratam as audições no Senado. E por isso, não deixa de ser surpreendente que de entre tantas e tão sérias suposições apenas esta pareça capaz de prejudicar a nomeação de um juiz no Senado dos Estados Unidos da América.
* DEPUTADO E PROFESSOR DE DIREITO CONSTITUCIONAL