Políticas de habitação: riscos e incertezas
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As recentes declarações do primeiro-ministro, Luís Montenegro, na Universidade de Verão do PSD anunciaram uma profunda reestruturação do modelo de governação da habitação em Portugal, transferindo a execução para as autarquias, o financiamento para o Banco Português de Fomento (BPF) e relegando o Instituto da Habitação e da Reabilitação Urbana (IHRU) para funções de "coordenação, regulação e planeamento". Esta mudança, aparentemente técnica, esconde uma transformação radical com implicações sociais, económicas e territoriais que carecem de fundamentação clara e de um debate público robusto. A ausência de estudos de impacto económico, social e territorial detalhados é particularmente preocupante, pois uma reforma desta magnitude deveria assentar em evidências sólidas e não em opções ideológicas.
A desarticulação das políticas públicas é um risco iminente. O IHRU acumula décadas de experiência técnica e memória institucional na gestão de programas de habitação pública e reabilitação urbana. A sua desvalorização operacional em favor de um banco de fomento (BPF) - cuja vocação é financeira e não habitacional - e de autarquias com capacidades díspares pode fragmentar o sistema, gerar sobreposições e comprometer metas críticas, como as do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR). A Lei de Bases da Habitação (art. 16.°, n.° 7) exige uma entidade pública promotora com capacidade de coordenação e gestão direta do património habitacional, um papel que o IHRU desempenha e que o novo modelo parece esvaziar.
A questão jurídica é central. Qual será, no novo modelo, a "entidade pública promotora" responsável pela articulação com políticas regionais e locais e pela gestão do património do Estado? Se o IHRU for limitado a funções burocráticas, como se garante a coerência nacional das políticas? A tripartição de funções - BPF a financiar, autarquias a executar e IHRU a planear sem recursos operacionais - arrisca criar vazios de competência e conflitos de governação, além de contrariar o espírito da Lei de Bases, que privilegia uma abordagem integrada.
Os riscos para o PRR são palpáveis. A decisão de não integrar trabalhadores precários recrutados para o PRR já está a causar fuga de talentos do IHRU, comprometendo a conclusão de projetos. A instabilidade laboral, agravada por salários baixos e sobrecarga de trabalho, ameaça a continuidade de iniciativas críticas, como as 26 mil habitações do programa "1.° Direito". A transferência de competências para o BPF - que recruta especialistas sem experiência em habitação - sem um plano de transição robusto pode gerar um vazio institucional difícil de colmatar.
A descentralização para as autarquias é outro ponto crítico. Muitos municípios carecem de recursos técnicos e financeiros para gerir parques habitacionais complexos. Critérios de residência prolongada, comummente usados a nível local, limitam a mobilidade geográfica e perpetuam desigualdades territoriais. Sem mecanismos de equalização e apoio técnico, a descentralização pode transformar-se num "caos gestionário", onde municípios mais frágeis ficarão excluídos de facto da execução de políticas nacionais.
A sustentabilidade financeira do modelo é frágil. A linha de crédito de 1300 milhões de euros com o Banco Europeu de Investimento é insuficiente face à crise estrutural da habitação. Municípios com elevado endividamento ou integrados no Fundo de Apoio Municipal podem não ter liquidez para suportar serviços de dívida ou contrapartidas nacionais, mesmo que os empréstimos não contem para o limite de endividamento. A ausência de mecanismos de garantia estatal ou bonificação de juros aumenta o risco de paralisação de projetos.
Internacionalmente, exemplos como os Estados Unidos mostram que a crise habitacional exige intervenção estatal robusta. Lá, 51,8% dos agregados familiares gastam mais de 30% do rendimento em habitação, e propostas como um fundo de 50 mil milhões para habitação social são debatidas para combater a falência do mercado. Em Portugal, a opção por desmontar operadores nacionais em favor de um modelo fragmentado ignora estas lições e arrisca agravar a crise.