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Não há muitos anos - talvez 30 - um jornal português anunciava a interrupção da sua publicação (até hoje...) com um editorial intitulado "Parar para não ceder". Esse jornal nascera da vontade de um grupo de jornalistas, mantendo o seu posto de trabalho original, que não lhes trazia propriamente a felicidade, tentarem a sua independência editorial num projecto que não respondia a ninguém a não ser a eles próprios, e não tinha outro objectivo que não fosse o de exaltar a independência do jornalismo.
Integravam o grupo nomes grandes, infelizmente já desaparecidos, como Jacinto Baptista, Abel Pereira, Ângelo Granja ou Acácio Barradas, e também, felizmente ainda vivo e com pontaria certeira, Baptista-Bastos, e outros; também alguns jovens a quem não era difícil reconhecer enorme talento, como Ferreira Fernandes e Paulo Nogueira, e até dois administradores, Pegado Liz e Rodrigues Bastos, experimentados e magoados com a pressão que também eles tinham sofrido no comando de órgãos de informação do Estado.
Eu integrava o grupo, dei um contributo para o título do tal editorial que João Paulo Oliveira escreveu com a mestria de sempre e que se seguiu à publicação de um encarte com excertos do Livro Verde dos Pensamentos de Muammar Kadafi.
O que acontecera fora que um administrador recém-chegado, ex conselheiro de Revolução, garantira o fim do período da nossa miséria, garantira que não mais seria necessário andar de mão estendida junto da gráfica que nos publicava o jornal (suponho que graças aos bons ofícios do Dr. Ruella Ramos, que, não sendo jornalista, foi seguramente uma das maiores figuras do jornalismo português na segunda metade do século passado).
O Livro Verde tinha sido o primeiro passo. A viabilidade financeira de "O Ponto", assim se chamava o jornalinho, estava assegurada, quem sabe passaríamos até a ter um ordenado, mas a nossa independência é que iria pelo cano abaixo. O jornal acabou.
A decisão desse grupo de jornalistas foi fácil. Afinal, melhor ou pior, todos tínhamos o nosso sustento noutro lado. Ao nível dos Estados, a diplomacia económica não pode olhar a quem, sobretudo em tempos de crise. É por isso que não me espanta que muitos Estados tenham relações económicas com países que vivem sob uma ditadura. Se o mundo fosse outro, se as relações entre Estados não fossem comandadas por uma enorme hipocrisia, estas coisas não aconteceriam, Hugo Chavez, Kadafi e tantos outros estariam sujeitos a um isolamento maior do que o que foi imposto a Fidel.
Ao alimentar relações com esses países, as democracias estão afinal a condenar os cidadãos que ali são oprimidos a essa opressão prolongada. Em troca de quê? - Normalmente de petróleo. É uma razão forte? - Possivelmente. Tão forte, quão inevitável, mas trágica para quem lá vive sobre a pressão de ditadores que se prolongam no poder, que o transmitem aos filhos, que não hesitam em matar e torturar.
E perante esses, que viveram oprimidos, ninguém encontrará uma desculpa. É por isso que nos tempos que correm, nos tempos em que alguns ditadores árabes vão caindo, não se sabendo bem se a mudança que aí vem será para melhor (lembrem-se da esperança que todos tivemos quando o Xá do Irão deixou o país...) me causa alguma impressão o discurso moralista de alguns estadistas europeus e americanos que até há pouco, pelas razões já sabidas, andaram de braço dado com esses mesmos ditadores e são agora os principais críticos e dos primeiros a condená-los. Estão, no fundo, a preparar-se para o novo tempo com a hipocrisia de sempre.
Prefiro o silêncio do nosso Sócrates. É um silêncio comprometido, digo eu, depois de o vermos tão amigo (seguramente mais do que a prudência aconselharia) de Kadafi ou do líder venezuelano. Comprometido entre a inevitabilidade para que é empurrado pelas necessidades do país e a consciência do que é correcto. É até um silêncio bem português, pobre e envergonhado. Mas não adiantará muito olhar para ele com a arrogância dos moralistas que, nada fazendo, nunca são verdadeiramente testados.