O que nasceu primeiro? O ovo ou a galinha? Nunca me interessou muito saber a resposta, confesso. No que toca a aves, proponho que troquemos esta pergunta ancestral por uma outra: quem vai morrer primeiro? A ave ou o passageiro de avião? Podem tentar ver aqui uma questão filosófica, mas é mesmo uma inquietação real, a propósito do futuro aeroporto do Montijo, que vem substituir o antigo aeroporto da Ota, que nunca chegou a existir.
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Mário Lino pensava que tinha sido claro quando disse "margem sul jamais", mas resolveram desobedecer-lhe. Neste momento o sentimento é "margem sul nunca mais", porque está difícil que a obra arranque. Quando, em 2007, o então ministro das Obras Públicas disse que a margem sul era um deserto, sem escolas, sem hospitais, sem estradas, sem comércio nem hotéis, chamando-lhe mesmo "Sara" (numa comparação elogiosa, se pensarmos, por exemplo, no Fogueteiro), todos lhe caíram em cima, exigindo até pedidos de desculpa, mas curiosamente agora os autarcas da zona exigem a construção desses hospitais e dessas escolas como contrapartida para receberem lá um aeroporto, provando assim que até aqui viviam, de certa forma, num deserto.
O aeroporto pode muito bem vir a ser um oásis, mas para já não passa de uma miragem, daquelas que se têm quando se está com muita, muita sede. A Agência Portuguesa do Ambiente apresentou uma declaração de impacto ambiental favorável, mas condicionada a duzentas medidas de compensação. Duzentas! Isso faz lembrar aqueles pais que dizem aos filhos "sim, podes ir sair à noite se tiveres 5 a todas as disciplinas, se nunca chegares atrasado, se nunca andares com os sapatos desapertados, se fizeres sempre os trabalhos de casa, se ajudares todas as velhinhas a atravessar a estrada (até as que não queriam passar para o outro lado), se ganhares a prova de corta-mato, as olimpíadas da matemática e o concurso literário. E o mais espantoso é que há filhos que conseguem de facto fazer tudo isto, desiludindo-se mais tarde, quando dão por si na tal discoteca às quatro da manhã e se apercebem de que não é assim tão fixe. Mas quando estamos obstinados com alguma coisa não desistimos. Seja uma ida ao Lust para tentar arrastar a asa à Matilde do 11.º B ou um aeroporto gigantesco, de onde levantarão voo milhares de aeronaves por ano.
A grande preocupação ambiental, além da questão do ruído que pode perturbar os moradores das redondezas, é a avifauna, isto é, as aves que por ali viveram sempre, tranquilamente, longe da agitação da Portela. A ANA vê-se assim obrigada a compensar os passarinhos, comprando terrenos e salinas onde eles possam continuar a viver e a reproduzir-se. Mas há uma questão que tem surgido sempre em rodapé e que me faz espécie (não uma dessas espécies protegidas que complicam a construção de pistas de aterragem): é referido também o risco de colisão entre aves e aeronaves, e aqui não está em causa apenas um traumatismo craniano para o corvo-marinho-de-faces-brancas (que seria lamentável, bem sei), mas a possível queda de aviões.
O ministro Pedro Nuno Santos tem alertado para a urgência do aeroporto, diz que estamos a perder muitos passageiros com esta espera... o pior é se perdemos turistas de forma mais literal adiante. Tipo um voo com 128 passageiros e 9 tripulantes, vindos do Japão, que acaba por se despenhar em Sarilhos Grandes (terra nada auspiciosa nas imediações de um aeroporto). Tenho visto com estranheza esta questão a passar meio despercebida, enquanto se discute o que pode acontecer ao aeroporto em caso de inundação devido à subida do nível do mar, tsunami ou tremor de terra. Parece que a meio do estudo começaram a fazer o guião para um filme-catástrofe, tipo "Guerra dos mundos". Eu sei que é importante prever todos os cenários. E que é muito mais épico imaginar o apocalipse do que uma cegonha que choca de frente com um Airbus A330, mas talvez esta segunda hipótese, ainda que menos glamorosa, seja mais provável. Mais uma preocupação para quem, como eu, não aprecia andar de avião. E se o piloto se tranca dentro da cabina para nos matar, como o outro louco da Germanwings? E se há um terrorista a bordo? E se me perdem a mala? (igualmente grave) E se temos de amarar no Hudson, que é como quem diz no Tejo? E se vem uma andorinha e não acaba a primavera, mas acaba connosco?
Humorista