Em todos os estados organizados e com matriz social, os sistemas públicos de saúde, segurança social e educação assumem uma inescapável centralidade, quer porque são o garante da coesão social, quer porque requerem dotações orçamentais muito significativas. Em Portugal, os sinais de desgaste de um modelo de tutela das instituições destes sistemas baseado no corte transversal, alheio a critérios de desempenho, são mais do que evidentes. O pedido de demissão em bloco de todas as 66 chefias do Centro Hospitalar de S. João (CHSJ), o segundo maior e o mais eficiente do país, reflete um estado de desespero inédito numa instituição desta dimensão. Mas está aí outra bomba atómica, a do Ensino Superior, que só não rebentou porque os reitores (ainda) não tomaram nenhuma medida radical.
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Não há dirigente público que não compreenda a difícil situação financeira do país e a necessidade, daí decorrente, de racionalizar orçamentos. Aquilo que muitos não percebem é esta cultura instituída por um governo "Excel" que pratica cortes cegos que arrasam transversalmente todo um sistema, colhendo no mesmo golpe e por igual os bons, os maus, os eficientes, os ineficientes, os necessários e os dispensáveis. Não adianta gerir bem, procurar potenciar a captação e utilização de receitas próprias como fazem algumas universidades, porque não haverá discriminação positiva. O destino parece ser o nivelamento por baixo, ou seja, a mediocridade que infelizmente se vai afirmando como marca de referência no país.
Acrescem ainda, no que se refere a financiamento, os erros grosseiros que, intencionais ou por incompetência, castigam as instituições. Na preparação do orçamento de 2014, o Governo confundiu o corte médio dos salários da função pública com o real corte nas universidades, prejudicando o seu orçamento em cerca de 30 milhões de euros. Apesar de reconhecer o erro, não devolveu ainda a verba, num comportamento inadmissível num Estado de direito.
No capítulo da autonomia, a deriva centralista tem-se acentuado. Importa explicar que algumas instituições, como os centros hospitalares e as universidades, têm características muito específicas que exigem elevado nível de autonomia na gestão, o que aliás está cristalinamente plasmado na lei, através dos regimes jurídicos aplicáveis.
Uma universidade é um ecossistema muito dinâmico, onde a gestão dos recursos humanos se faz num contexto de permanente avaliação e progressão pelo mérito, quer absoluto (expresso em provas académicas e no benchmarking internacional), quer relativo (expresso em concursos para provimento de lugares na carreira académica). Por outro lado, trabalha com recursos materiais, nomeadamente instalações e equipamentos científicos, que não se ajustam aos ditames das regras comuns da administração. Ora, o nível de interferência do Governo central na autonomia tem vindo em crescendo, tolhendo o seu desenvolvimento, num desrespeito sistemático do espírito e da letra da lei.
Um bom exemplo é o congelamento dos processos de passagem ao regime fundacional, depois de algumas universidades terem feito a discussão interna e a respetiva proposta nos termos do Regime Jurídico das Instituições de Ensino Superior. O Governo, simplesmente, meteu os processos na gaveta, protagonizando um rotundo "não!" à autonomia das instituições conferida por uma lei da Assembleia da República.
Perante tudo isto, o que fazem os reitores? Encontram-se regularmente, tomam posições defensivas, como foi a de não pagar os subsídios de férias sem cortes, e no fim emitem o enésimo comunicado em tom de lamento, que no limite vai até à suspensão da colaboração com a tutela. O que conseguiram desde então? Pouco, ou mesmo nada. Se tivessem apresentado o seu pedido de demissão em bloco, os 30 milhões apareceriam em menos de 24 horas.
É tempo de ação. As chefias e a administração do São João estão a dar um exemplo de quem se preocupa mais com a missão do que com o conforto do posto. Aos reitores, exige-se coragem. De que estão à espera?