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Nunca gostei das comemorações oficiais do 10 de junho. Porque acentuaram sempre as assimetrias do nosso país. Porque nada parecia genuíno. Este ano, pela primeira vez, o palco dos eventos instala-se, sobretudo, em França. Para homenagear a diáspora. Porque hoje é também dia das Comunidades Portuguesas. E de Camões. Nunca sentimos verdadeiramente o que isso é. Vamos lá ver se este ano conseguiremos celebrar bem esta data.
Marcelo é um presidente da República diferente de todos os seus antecessores. Mais próximo, mais energético, mais imprevisível. Por isso, não surpreendeu esta sua ideia de assinalar maioritariamente o 10 de junho em Paris, num formato completamente inovador. Hoje, ao final da tarde, juntam-se, na Mairie de Paris, os presidentes da República de Portugal e de França e os respetivos primeiros-ministros. A eles, associa-se ainda a maire de Paris. Na cerimónia, serão distinguidos quatro portugueses que vivem em Paris e que, na fatídica noite dos ataques ao Bataclan, abriram a porta de suas casas para deixar entrar as vítimas do ataque terrorista que, perdidas numa rua sangrenta, procuravam um porto de abrigo. Gente comum, é certo. Gente solidária e destemida, é um facto. E hoje, diante de Marcelo, Costa, Hollande, Valls e Hidalgo, vão receber a Ordem da Liberdade. Porque as condecorações existem para homenagear distintas pessoas e não para distribuir medalhas pelos que circulam pela corte.
Eis como Marcelo Rebelo de Sousa consegue projetar o 10 de junho para fora de Portugal, colocando as mais altas individualidades de um país a discursar nas nossas celebrações (estão previstas intervenções do presidente Francês e da maire de Paris) e, simultaneamente, faz entrar nas cerimónias o cidadão comum, conferindo-lhe toda a centralidade do programa oficial. Excelente ideia.
Amanhã o presidente da República prolonga o mesmo registo, impondo insígnias a pessoas relativamente desconhecidas, mas que desempenharam um papel importantíssimo na vida dos nossos emigrantes. Como o maire Louis Talamoni que será condecorado a título póstumo pelo seu empenho em proteger milhares de portugueses que, entre os anos 50 e 70 do século passado, se instalavam no Bidonville do município de Champigny, um bairro de lata sem as mínimas condições de salubridade e promotor de profundas discriminações sociais. Apesar da oposição política que encontrou à sua determinação em dotar aquele bairro de melhores condições de habitabilidade para os emigrantes portugueses, Talamoni nunca desistiu da sua ação. Mesmo que isso quase tivesse conduzido o seu município à falência... Passados estes anos, Portugal rende-lhe (justa) homenagem. Para além de o tornar Comendador da Ordem da Liberdade, o presidente da República inaugurará, na presença do primeiro-ministro português, um monumento em homenagem deste ilustre autarca.
O último dos três dias em Paris será preenchido com uma visita à delegação da Fundação Calouste Gulbenkian, com a participação na Festa Rádio Alfa e com a visita a duas exposições. Trata-se de um programa diversificado que, para ser cumprido, terá de ser bem cronometrado. Sabe-se que o presidente Marcelo é célere nas deslocações que faz, mas, neste caso, o mais difícil será continuar a rasgar um passado carregado de gestos bolorentos e sufocado por caciques que ainda pululam à volta de Belém à procura de uma porta entreaberta.
Percorrendo a lista das cidades que receberam as comemorações do 10 de junho, encontra-se uma grande atenção à diversidade geográfica. Mas quem se recordar das últimas celebrações sentir-se-á incomodado pela forma como se assinalava a data. Porque as cidades foram sempre lugares usados por uma espécie de séquito que viajava de Lisboa para festejos fechados a quem aí vive. Para quê celebrar o dia 10 de junho no chamado país real, se o presidente da Comissão de Honra, os homenageados e os convidados vinham todos da capital? Ah, sim, houve sempre um lugar de destaque para o presidente do município de acolhimento, poder-se-á argumentar. Não sei se algum autarca alguma vez percebeu a figura de bobo da corte que aí desempenhava...
Hoje, haverá um 10 de junho diferente. O primeiro de muitos, espera-se.