Recordando São Francisco, Diógenes e Jesus como exemplos de uma pobreza extrema que Michel Serres apelida de "mística da pobreza", destaca este pensador que "a filosofia da pobreza diz a verdade".
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Qual verdade? Que "os mais necessitados entre os pobres conservam sempre para si um objeto pessoal que lhe permita salvaguardar alguns instantes de intimidade": um manto ou um abrigo. Dai a constatação de que "uma vida pública total nos destruiria". Servem estas referências para refletirmos sobre a inumanidade da vida dos "sem-abrigo" que, dessocializados ou acantonados em comunidades marginais, existem como náufragos quase sem "o mínimo de ter no ser".
A origem da sua miséria pode ter múltiplas causas, desde os desaires profissionais até às perturbações mentais graves, passando por desagregações familiares, alcoolismo, solidão, pobreza e desígnios de evasão. Mas, se apurar as causas é importante para que se procure eliminá-las ou condicioná-las a montante, tal não pode permitir a nossa indiferença quando, entretanto, nos confrontamos com a aparente inexorabilidade da sua situação. Indiferença marcada pelo desvio do olhar e dos passos com que percorremos o nosso quotidiano porque, afinal, tentamos ignorar o que de algum modo nos perturba.
Temos de louvar e admirar as organizações que procuram assegurar a alimentação, a higiene e os agasalhos daqueles e daquelas que, alojados nos passeios e em todos os sítios que possam converter nos seus lugares, esperam que o tempo passe sem, no fundo, nada esperarem. Todavia, não podemos aceitar, perante nós e entre todos nós como uma sociedade política e civil que constituímos, que a solidariedade de alguns facilite a nossa indiferença ética.
Partilhamos mais ou menos os valores do consumismo, do domínio do ter sobre o ser e até do ser enquanto ter, mas esquecemos sobranceiramente que não pode existir uma humanidade autêntica enquanto, ao nosso lado, sobreviverem náufragos sem, ou quase sem, "o mínimo de ter no ser" para poderem ser, na sua existência social e íntima, plenamente humanos.
*Coordenador do Instituto Superior de Ciências Empresariais e do Turismo/Observatório da Solidão