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A glória não aparece num vão de escada, escondida entre as paredes do anonimato ou num súbito ataque de afectividade, a tropeçar às golpadas, só porque sim. O constrangimento da exposição pública não é tanto o de revelar virtudes e brilhos intensos em momentos de recato, antes e muito mais, o soro da verdade sobre os inexoráveis defeitos e paradoxos, contradições e assimetrias, sobre todas as razões que convocam os trinta por uma linha. E é aí, normalmente, que a casa vem abaixo, quando os escolhos à flor da água se varrem sólidos para debaixo do tapete e, perante telhados de vidro, se tenta fazer cara alegre. A cidade do Porto ganhou mais um prémio de European Best Destination e, à luz da formatura, parece que tudo está bem. Parece que tudo está bem mas não está. Nem sequer a nossa auto-estima. E todos sabemos disso.
Depois há o reverso da medalha: estamos tão prontos para ver o pior que por vezes nem nos sentimos capazes de ver o que de bom está à nossa frente. O Douro Vinhateiro, Serralves, a escrita e o peito feito, o Porto clube, a música e a Casa dela, a arte e o engenho, o povo do Porto como parte íntima da tão proclamada "gentes do Norte" (expressão que soa, na boca de tantos centralistas, como o farto ribombar dos tambores pela "província", palmadinhas nas costas, como se algum dia, nós - uns meninos, para eles - consentíssemos ser amaciados pelos mauzões da turma numa crise interesseira de paternalismo à saída para o recreio).
Pode dizer-se que, com honrosas excepções, temos andado amarrados. Amarrados às políticas de sempre, às políticas da "inevitabilidade" e do "fim da História", aos interesses que servem o centralismo como uma luva. Amarrados, como no Porto, em 1806, também estavam acorrentadas as 20 embarcações na Ponte das Barcas. Temos acertado contas com a gente, mas nunca com quem mais precisa. No final das contas, onde tem andado o mundo do Porto? Sequestrado como o país, às vezes para pior, continuando a manter um Muro de Berlim entre a parte Ocidental e Oriental da cidade, agravando as assimetrias, virando a cara à pobreza. Resguardando-se dela, convenientemente. O patamar civilizacional desta cidade ainda está por cumprir.
Olhar para dentro, de dentro. Tratam-nos como cidadãos subprime porque pensam que estamos numa cidade subprime. E esse não é o nosso destino. Nem sequer o nosso destino turístico, alinhavado a galardões do ano. A Área Metropolitana do Porto apresenta números de agressão face ao país: nos limiares da pobreza, nos vencimentos médios, nos rendimentos face às qualificações das mulheres. Exemplos. A cidade tem competido contra si mesma nos últimos anos, contra os seus telhados de vidro. E nem assim perdeu, mesmo com alguns telhados de puro amianto.
A eleição de Rui Moreira para a Câmara Municipal do Porto não pode ser resumida à vitória de um jogo de compromissos. É legítima a esperança de ter o Porto de volta. Urge retirá-lo do obscurantismo e da zona cinzenta, do friendly-fire com os cidadãos e com a cultura, dos popós de antiquário na avenida. É legítimo e urgente que se acredite e pense num tempo diferente. Não num admirável mundo novo, tendo nós saído de várias guerras a céu aberto, com orgulho e mérito e até, neste momento, com sedução. Mas agora que já não nos agarramos ao pescoço uns dos outros como vítimas de nós mesmos, que não nos baste a sedução.
A cidade do Porto, media-hype e sedutora, não pode multiplicar o Carnaval de hoje por mais dias, não pode ter duas caras e ignorar novamente as duas faces da moeda. Na moeda ao ar, de um lado uma cara, do outro uma simbologia. De um lado somos nós, do outro lado o que fizemos, a tal "ciência dos homens no seu tempo" de que Marc Bloch falava, numa perspectiva conservadora e nada economicista. Não se foge da cidade pelo desígnio de fazer da European Best Destination 2014 a nossa cidade de atracção. Eu votei. Porque do destino não se foge, tratemos dela com carinho. Que a devolvam viva e a sentir muito, na dupla acepção. Como eu sinto e procuro no visível exemplo de Serralves, tantas vezes, os murros no estômago e o deleite. Não é porque não se esconde que deixa de ser um tesouro.