Portugal, a Europa e o Atlântico
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Há porventura quem imagine que o processo de adesão de Portugal à Comunidade Económica Europeia, nos anos 80 do século passado - assim se designava nesses tempos a atual União Europeia - terá sido um processo pacífico. Mas não foi. Foi um processo altamente polémico em que prevaleceu, a custo, o voluntarismo indómito do primeiro-ministro Mário Soares e, com a devida homenagem, do seu ministro dos Negócios Estrangeiros, José Medeiros Ferreira. No período de pacificação social e estabilização constitucional da "jovem democracia" portuguesa - a seguir à transição revolucionária de 1974/1976 que este ano celebra 40 anos de vida - o país viu-se obrigado por duas vezes a recorrer ao Fundo Monetário Internacional para evitar a bancarrota. Ao longo desses nove anos, teve dez governos diferentes, o que dá uma média de sobrevivência por governo inferior a um ano! As previsíveis alterações estruturais da sociedade portuguesa e a partilha de poderes soberanos que a adesão à Europa implicavam, alimentaram os fantasmas e os profetas da desgraça que então emergiram, explorando receios de mudança e naturais incertezas sobre o nosso destino coletivo. E foi assim que o Governo de Mário Soares foi derrubado a meio do mandato, em 1985, e que Cavaco Silva - ainda indiferente a "crispações" e ao risco das roturas políticas - ganhou as eleições legislativas antecipadas desse ano, com maioria relativa, e alcançou a chefia do seu primeiro Governo.
Há 30 anos, a entrada na "Europa" representava para os portugueses a liberdade, a abertura cultural, a democracia, a prosperidade. Era o corte definitivo com o país "orgulhosamente só" que o salazarismo mantivera pela força durante 48 anos - uma herança que ainda hoje estamos a pagar. Era uma Europa muito diferente desta "União" esquecida das suas antigas promessas de paz e solidariedade, que parece não saber o que quer nem para onde vai. Uma Europa que, como diria o velho Eça, em vez de crescer, engordou, engolindo populações e territórios do Norte, que transformaram a cidadania europeia numa caricatura - como bem lembrava, há pouco, Seixas da Costa - e reduziram a "soberania partilhada" à "prerrogativa" alemã. Uma Europa lenta e relutante no ajustamento de uma união monetária incompleta que penaliza sobretudo os povos da periferia. Uma Europa temerária que engrossa expectativas vãs na Ucrânia, dilacerando os seus povos atormentados por décadas de fome e pelo apetite insaciável dos novos "oligarcas". Uma Europa que outrora iluminou o Mundo e liderou pelo exemplo! Será que ainda vamos a tempo de a salvar? Claro que sim, mas precisamos de nos acautelar dos ilusionistas e aprendizes de feiticeiro prontos a sacar da algibeira a reinvenção da "guerra fria" ou um "plano Marshall" requentado...
No segundo dia de trabalho do Fórum de Políticas Públicas - uma iniciativa anual do ISCTE - destacou-se, pelo inusitado, uma declaração do cabeça de lista do PSD ao Parlamento Europeu, Paulo Rangel: "Temos oportunidade de criar crescimento na União Europeia, puxando os Estados Unidos do Pacífico para o Atlântico". Não se imagine que se trata de especulação geológica em torno da teoria da "deriva" dos continentes, apesar de tudo, mais verosímil. Não! É mesmo genuína especulação geopolítica. Uma afirmação destemida que nem o contexto pré-eleitoral em que foi proferida conseguirá justificar. Num registo bem mais realista, o seu parceiro de coligação governamental, Diogo Feio, ao arrepio dos "cortes nas gorduras do Estado" que ficaram como emblema das políticas de austeridade do Governo, advogava a criação de um novo ministério - precisamente, o do "Ministro dos Assuntos Europeus". Não basta porém criar um departamento governamental dedicado. É preciso uma mudança radical de atitude. Para começar, faz falta uma reflexão séria sobre a nossa experiência de integração europeia desde 1985 até hoje. Alguém acreditará ainda que os nossos erros se resumem ao último Governo de José Sócrates? Depois, há que saber tirar lições do passado, concertar posições e estratégias com quem partilha as mesmas preocupações e interesses, sem descurar nenhuma instância decisória da União. É que a Europa, enfim, faz falta ao Mundo: uma Europa inspiradora e empenhada em evitar que se repita a sua trágica história.