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O agravamento crescente da "crise dos refugiados", associado aos ataques terroristas que atingiram tragicamente a cidade de Paris, pela segunda vez, obrigou os responsáveis europeus a abandonar a atitude de indiferença cínica perante as desgraças que atingem os seus vizinhos assolados pela guerra. Uma obstinação que, além de contrária aos valores da paz e da solidariedade entre os povos, já ameaça os próprios fundamentos da União, por exemplo, transformando em regra as exceções ao princípio da liberdade de circulação garantido pelo tratado de Schengen.
É sem dúvida preocupante o excesso das medidas de segurança adotadas pelo Governo francês. Não só parece desproporcionado o prolongamento do estado de sítio, pelas restrições graves que impõe ao exercício dos direitos fundamentais dos seus cidadãos, como se oferece de pertinência duvidosa a invocação da "legítima defesa" como fundamento para as ações de bombardeamento na Síria que, bem pelo contrário, sugerem apenas um intuito mesquinho de vingança e retaliação. Os inevitáveis "danos colaterais" das missões aéreas recomendam parâmetros mais exigentes e restritivos quanto à legitimidade da sua utilização. Contudo, também a pretexto do referendo britânico, alargou-se a compreensão que estas questões reclamam do Conselho Europeu que agora realiza a última reunião deste ano, em Bruxelas, quebra-se o "tabu" que pendia sobre o processo eternamente adiado da adesão da Turquia à União Europeia e inscreve-se na agenda de trabalhos o problema das fronteiras externas.
Dois meses e meio depois das eleições legislativas de outubro, são já bem claras as diferenças que marcam a intervenção do Governo português junto das instituições da União Europeia e dos outros estados membros. Afirmando a necessidade de "uma ação europeia forte e credível" na luta contra o terrorismo, António Costa, na sua primeira interpelação parlamentar, como primeiro-ministro, não deixou de denunciar a insuficiência das medidas repressivas e a hipocrisia daqueles que, concentrados apenas em atacar as suas consequências, desprezam a compreensão dos condicionalismos económicos, sociais e culturais que, no exterior e no interior das fronteiras europeias, provocam a miséria e a destruição, semeiam o desespero e encaminham para a violência extremista largas camadas das populações juvenis onde os terroristas encontram terreno fértil para recrutar os seus agentes. Por isso, além do "diálogo com comunidades e líderes religiosos", é necessária uma atuação visível nos "domínios da integração social, da educação, da habitação, da cultura" e o reforço efetivo da cooperação europeia com os países de origem dos fluxos migratórios, habitualmente concentrada na vertente securitária.
A grande viragem política encetada com as eleições legislativas ganha agora visibilidade, também, no espaço europeu, onde o Governo anterior tinha criado uma reputação de fidelidade canina às doutrinas dominantes da austeridade e do empobrecimento coletivo, assumindo e fazendo recair sobre o povo português a expiação de um pretenso pecado de "querer viver acima das suas possibilidades". Uma viragem no plano das políticas sociais, da dignidade do trabalho, da igualdade, da educação e do desenvolvimento. Uma viragem na atitude face às reformas indispensáveis à construção europeia, nas matérias da união bancária e fiscal, na correção das assimetrias decorrentes da defeituosa configuração do Euro e na exigência do regresso às políticas de convergência. A ousadia de uma afirmação responsável, solidária e generosa no plano internacional, na ajuda humanitária, no acolhimento de imigrantes e na solidariedade com os outros povos.
* DEPUTADO E PROFESSOR DE DIREITO CONSTITUCIONAL