"É obrigatório dizê-lo: pouca gente tem ouvidos puros. Ou mãos limpas. Ler um poema é poder fazê-lo, refazê-lo: eis o espelho, o mágico objecto do reconhecimento, o objecto activo de criação do rosto. O eco visual se quanto a rostos fosse apenas tê-los fora e ver." Disse-o Herberto Helder ao jornal "Público" nos idos de 90.
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A frase é apenas uma pequena centelha do génio. A lembrança, a humilíssima homenagem que todos lhe devemos.
Do pouco que conheço da obra de Herberto Helder, ficou-me sempre esta ideia. A de que a língua portuguesa era o seu corpo siamês, que conseguiu moldar, fazer refletir, ecoar, até ao limite da independência de dois que respiram debaixo da mesma pele.
Mas, de repente, a sua afirmação naquela entrevista projeta-nos abruptamente para uma realidade social e coletiva onde todos nos resignamos a deixar de ouvir, onde todos apenas registamos os sons fabricados da conspiração ou da superficialidade.
"Para o PS é melhor que José Sócrates se mantenha preso!", diz um. Todos registamos que, por causa da real politik, se impõe que absolutamente tudo possa ser usado como arma de arremesso no contexto de um processo eleitoral. Se ouvíssemos, perceberíamos que a dignidade de uma pessoa, seja qual for, deve estar muito acima de qualquer corrida partidária.
Sobre os lesados do banco BES disse outro: "quem escreveu o mail (em que se assegurava que os detentores do papel comercial do BES seriam ressarcidos) não tinha formação contabilística (...); se fosse eu a escrever o mail não escreveria assim!". Que é como quem diz, a vida real vai deixar-me repousar à sombra do longo processo jurídico. Na verdade, todos devíamos ser capazes de ouvir que quem prometeu se enganou e que agora todos querem que o Novo Banco se mantenha virgem de problemas para render o mais possível. Não fossem sobretudo os bancos que lá puseram o dinheiro!
"Tinha vergonha de ter os cofres cheios" ou "É melhor ter os cofres cheios do que vazios". Até as afirmações mais contraditórias soam ao mesmo. Sim, porque se fossemos capazes de ouvir para além do básico restolhar dos espadachins, perceberíamos que não é bom nem mau.
É apenas resultado de uma diligência obrigatória que ninguém sabe exatamente que excedentes vai gerar e que, em caso nenhum, tem qualquer ligação com a nossa melhoria estrutural enquanto país.
Dá medo pensar que quem pelo menos sabia que se podia ter ouvidos puros, tenha morrido.
ANALISTA FINANCEIRA